quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

[o corpo]

o corpo
as mãos
um vaso aberto
à descoberta de um sonho

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

[o corpo]

o corpo

o peso
imenso
do corpo

âncora
extrema

cadeia
intensa

onde se oculta
a medo
o viandante
do universo

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

[o coração]

o coração
da pedra

sente
o pulsar

e dá-lhe forma

liberta
o corpo

e dá-lhe um nome

domingo, 28 de dezembro de 2008

[O cinzel do instante]

O cinzel do instante
desliza por sobre a colina
onde a cidade se derrama
como se encostasse
a cabeça
no travesseiro das rochas
e o sol tocasse os ténues cabelos
que ondulam
no dorso do olhar.

sábado, 27 de dezembro de 2008

[Nunca a palavra será árvore]

Nunca a palavra será árvore
desnuda e desprovida de vida. A
palavra é fruto gerado
e gerador. Marco geodésico.
Cordão umbilical.
Potência solar,
enigma, teorema,
força íntima do poema.
Sémen que fecunda o ventre
da própria memória.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

[no ventre]

no ventre
da noite

há um hímen
por romper

uma secreta
vulva

um hirto
clitóris

uma chama
por arder

ou um poeta
perdido

e louco

nos beirais
do tempo

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

[no varandim]

no varandim
do sonho

lança
a trança

por ela
treparei

para em ti
me perder

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

[No topo, ao centro, o olhar Cristo descobre]

No topo, ao centro, o olhar Cristo descobre,
Qual rosa cuja pétala se esvai
Sob o peso do orvalho que lhe cai
Para o ventre do cálice que um nobre

De Arimateia, sob a cruz, e sobre
A dura pedra, pôs. Resta o que vai
No olhar seu que sentes no teu. Sai
Nesse olhar, nessa luz. Que em voo dobre

O limite do sonho e da esperança.
Que nesse olhar habite uma lembrança
De paz, de um só instante em que um sorri-

So conquiste do mundo este pendão
Como trofeu de amor. Que Cristo não
Diga: Eli, Eli Lamma Sabactani.

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

[No teu olhar, trazias o vento e as marés]

No teu olhar, trazias o vento e as marés
e a exacta cadência lunar,
exposto brilho em movimento
eterno e terno que acaricia
a quente face do areal
onde o vazio preenche a ausência
em que outrora um batel pronunciava
sede e fome de mar e de infinito.

Das ondas, o infindo azul, o
branco da espuma onde os cavalos
alados do sonho nascem
para atoarem os barcos
sobre o agitado dorso do mar.

No íntimo dos teus olhos, havia utensílios.
Machado, serra, plaina, grosa, lima,
formão, lixa para a faina
das árvores navegantes.
E astrolábio, carta, régua, esquadro,
compasso, cálculo de longitude
e latitude. No teu olhar,
há o momento exacto em que enfunadas
as velas preenchem a linha
do horizonte em silêncio.

Ou somente a distância precisa
medida entre partir e regressar.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

[no teu olhar]

no teu olhar
se decifra
a corola

ampla

de um abraço

domingo, 21 de dezembro de 2008

[No sol de agosto, embarco no poema]

No sol de agosto, embarco no poema
e aguardo
que a andorinha renove o tempo e habite
o voo rumo ao sul
no ventre do outono.

sábado, 20 de dezembro de 2008

Prefácio - "27 Poemas", António Rebordão Navarro (Edium Editores, 2008)



"27 Poemas"

António Rebordão Navarro

(Edium Editores, 2008)


Nota breve



Pois bem, que dúvidas não restem sobre o que compõe este volume de poesia. São mesmo vinte sete os poemas que este “27 poemas” contém. Nem mais nem menos.

Aliás, outra coisa não seria de esperar. Como é do conhecimento de todos, a Matemática é uma ciência exacta, pelo que o erro está posto de parte.

Embora a Matemática seja uma das componente mais importantes da Poesia (ela e a música) o certo é que a aridez deste título pode conduzir o leitor a um erro, a um grave erro.

Este “27 poemas”, embora tenha sido baptizado como tal, traz-nos um enredo, uma linha de continuidade deveras interessante, em que o poeta, insultado como tal, numa tarde de sábado, na Rua da Sofia, em Coimbra, nos oferta um olhar irónico sobre a cidade, a cidade sob o signo helénico.

E é em plena ágora que António Rebordão Navarro nos serve estes seus poemas, os vinte e sete enformadores deste volume. Aí, ele lega-nos a sua visão de morte e de amor, os grande temas de toda a arte poética, mas tudo com uma pitada da tal ironia que antes referi, mas também, talvez sobretudo, a sua própria praxis poética.

Ou seja: “27 poemas” dá-nos um importante contributo sobre a visão do autor acerca da forma como o poeta deve usar a palavra poética, inserindo-a no contexto cultural e social onde se movimenta, erguendo a sua voz mesmo que essa demanda seja “o lugar em silêncio do poema”, mas tudo porque “fazemos de conta / que o fogo não queima, enquanto ardemos” ou não fossemos nós os que nos fizemos “as pedras do edifício”.

Ler este volume é, portanto, deixarmo-nos conduzir, sempre olhando de soslaio, como diz o povo: “um olho no burro outro no cigano”; e enveredar pelos caminhos desta cidade, a dos homens, mas também da poesia.



Xavier Zarco
Coimbra, 26 de Outubro de 2008

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

2008-12-17 - Palacete Viscondes de Balsemão (Porto) - Apresentação de: “27 poemas”, de António Rebordão Navarro (Edium Editores, 2008)

Muito boa noite,

27 Poemas” é um livro que me trouxe ao longo destes vinte anos gratas surpresas (destaco cinco):

Primeira, o prazer da sua descoberta e leitura;

Segunda, o sorriso malandro do meu filho quando o garatujou;

Terceira, a novidade que o Jorge Castelo Branco me anunciou, a da sua reedição;

Quarta, o autógrafo do autor nessa edição de mil novecentos e oitenta e oito e o desafio para escrever o prefácio a esta reedição;

E, por último, a quinta surpresa (e esta bastante inesperada – creio que foi numa tarde de sábado, só pode ter sido numa tarde de sábado), a de vir aqui apresentar esta obra.

Não sendo surpresas a mais para um livro, sobretudo de poesia, pela própria natureza deste género literário, tal, ao nível pessoal, excedia todas as expectativas.

Após o meu sim, que foi imediato, caí na realidade. Por quê eu? Eu que este ano tive a sorte de apresentar obras de autores que muito admiro como José-Augusto de Carvalho e José Félix, poetas que encontrei através da internet e que a Edium em boa hora editou. Dois nomes que hoje podem ser meramente isso: dois nomes; mas, estou certo, que o futuro lhes dará o crédito que bem merecem.

Pois bem, o próprio livro guarda, e revela a quem o ler, a resposta a essa pergunta. Vendo bem, só podia ser este, ou seja: eu, a fazer esta apresentação.

A chave reside no poema: “O grito”, onde Rebordão Navarro escreve o seguinte, e passo a citar:

essa tarde de sábado em Coimbra,
(Rua da Sofia, há muitos anos),
em que me insultaram de poeta.

É, portanto, pelo exposto, minha estrita obrigação vir aqui à cidade do Porto, eu, que trabalho no Jornal Centro cuja sede se situa na Rua da Sofia, em Coimbra, repetir o insulto.

E se assim é, que assim seja.

Pois fique sabendo, caro Rebordão Navarro, que, quer queira quer não, é mesmo poeta.

Bom, mas não estando na minha cidade, tenho de ter mais cuidado com o que digo. O melhor é justificar a repetição do insulto.

Recorro a um excerto de uma matéria publicada no Jornal de Letras, a vinte e quatro de setembro último, sob o título de “O poeta na cidade, hoje”, de Eduardo Lourenço, onde este, a dado passo, escreve o seguinte, e passo a citar:

(...) os que sob a superfície lisa das águas escutam um rumor, um apelo que, literalmente falando, os não deixa viver, ouvindo o já ouvido, mesmo o mais belo e sublime, e buscam por sua conta a melodia única que lhes explicará o tempo que é o seu próprio tempo, e que não sossegam enquanto o não inventam e se perdem nele para se salvar. São eles que nós chamamos de poetas. São os que acrescentam a criação à criação e assim renovam o mundo. (1)

Fim de citação.

Rebordão Navarro enquadra-se neste possível esboço do que é, ou pode ser, o poeta. O que busca “por sua conta a melodia única que lhes explicará o tempo que é o seu próprio tempo”, o que acrescenta “a criação à criação e assim” renova “o mundo”.

E este seu livro: “27 poemas”, sob a capa de uma pretensa aridez anunciada pelo próprio título, corrobora essa afirmação.

Estamos perante uma obra que classifico, como no sítio da Edium se escreve, e a meu ver bem, “um dos segredos mais bem escondidos da poesia portuguesa” (2), ao que acrescento: segredo que é urgente desvelar.

Mas entremos no livro, neste “27 poemas”.

Este volume sugere-nos, pela natureza do título, uma mera compilação de poemas. Algo sem um fio condutor, desprovido de uma ligação interna.

No entanto, ao abri-lo, deparamo-nos com um poema cujo título poderá ser demolidor dessa ideia. Lê-se: “Profissão de fé”; ou seja: uma declaração pública daquilo em que se crê; e onde o poeta nos oferta esta quintilha, que é, na minha opinião, a parcela mais relevante e que passo a citar:

Eu sou, minha senhora, a sua sombra.
Estou consigo quando você se esvai,
me castiga ou compõe
com religiosos dedos a gravata
sob o colarinho amarrotado.

Fim de citação.

É, na minha leitura, o primado da vida. A morte, que encontro nesta senhora, perde o seu estatuto perante o homem, perante aquele homem que, tomando consciência plena desta, agarra com ambas as mãos o leme do seu próprio caminho. Ele é a sombra da morte, não o contrário.

Esta firme convicção em o poeta poder tomar como que posse da morte, ou seja: do medo, do medo último, para ganhar os argumentos essenciais para a plena fruição da vida.

Naturalmente que o amor, melhor: a relação amorosa; é um desses possíveis argumentos. Aliás, ele está bem presente na sensualidade patente no poema “Movimento marítimo”, embora nunca perdendo de vista que é, tal como se refere em “Declinação do amor”, e cito:

Por ele [ou seja: o amor] nos vamos destruindo.
Corroídas, as palavras
sobem ao céu da boca, crucificam-se,
sabem a língua morta.

Fim de citação.

Em suma, leio aqui que o amor não se faz. Muito provavelmente nem se construirá. O amor é. E só desta forma ele deixará de ser um possível argumento, mas um dos mais relevantes argumentos para a tal plena fruição da vida.

Falei desta convicção, a de tomar como que posse da morte. Ela conduz à possibilidade da fundação do templo, um espaço interior, íntimo, a que Rebordão Navarro, naturalmente esta é a minha leitura, denominará posteriormente de casa.

No primeiro de dois poemas intitulados: “A fundação do templo”; observamos um interessante jogo de antíteses. Como exemplo: “Você pode ser lúcida e ser louca” ou “Você é uma lâmina, / ou um lago deixando-se sulcar”. No fundo, estamos aqui, apesar de ser o templo interior, íntimo, a observar, neste jogo de verso e reverso, uma imagem do mundo, do real e do mundo outro que só a boa poesia pode criar. Embora este último seja um mundo outro, diverso, não está dissociado do real. O mundo é um eterno jogo de opostos.

E é por isto que há pouco afirmei que o templo passa a ser casa. Embora lugar de refúgio, de protecção, mas também de afecto, é ponto de partida e de chegada, é espaço de reflexão que, permitam-me a expressão, só o nosso próprio cantinho propicia e potencia.

De novo, as convicções. No primeiro poema deste tríptico intitulado: “As casas (...)”, Rebordão Navarro lega-nos isto, e cito:

Fizemo-nos as pedras do edifício

Fim de citação.

Embora exista a passagem de templo, espaço sagrado, de veneração, para casa, espaço habitado, logo mais ligado à vida, ao quotidiano, eles, templo e casa, persistem no poeta, no construtor do poema. Melhor: o poeta é templo e casa. São a mesma entidade, o mesmo ser.

E é aqui, neste ponto, nesta junção entre o interior e o exterior, não só do mundo real, mas do mundo outro que a poesia revela, que chegamos ao epicentro deste livro.

Um simples cálculo matemático seria suficiente para o determinar, mas, perdoem-me os matemáticos, ler é muito mais divertido.

Ora bem, se são vinte e sete, o décimo quarto está à mesma distância do primeiro e do último.

Esse poema, o tal epicentro do livro, tem o nome de: “Concerto”; um nome que por si só já nos diz muito. É um poema singular neste volume, marca a diferença relativamente aos outros vinte e seis enformadores da obra. É o único dedicado, neste caso a Silvestre Fonseca e é, também, o único datado, desta feita consta: Vila Viçosa / 09-06-1987.

Para além de nos mencionar o óbvio, mas algo só adquire essa característica porque alguém o disse, ou seja: todo o poema é dedicado a algo ou a alguém e todo o poema nasce ou ganha a forma com que se apresenta ao outro, ao leitor, num determinado lugar e numa determinada data, refere-nos da importância da musicalidade no poema.

E esta musicalidade, que as palavras também constróem, para além da sua fundamental carga racional, desperta no outro, no leitor, o lado emotivo.

Como refere Fernando Pessoa, num texto sobre estética, e passo a citar:

um poema é um produto intelectual, e uma emoção, para ser intelectual, tem, evidentemente, porque não é, de si, intelectual, que existir intelectualmente. Ora a existência intelectual de uma emoção é uma existência na inteligência – isto é, na recordação, única parte da inteligência, propriamente tal, que pode conservar uma emoção. (3)

Fim de citação.

Talvez por isso, digamos assim, a segunda parte do livro se inicie com o poema “Cor-cordis”, o espaço referencial do coração, aqui, pelo menos assim o leio, como espaço onde a memória habita, a tal recordação referida por Fernando Pessoa. E este reavivar da memória é bem patente pelo engenhoso processo anafórico presente neste poema.

Aliás, a importância da memória na construção da obra é sublinhada pelo poeta quando este afirma no poema: “As águas”, o seguinte:

Em vão nada se faz, nada se queima.
Projectam-se partos na memória.


Em jeito de resumo, diria que “27 poemas” é uma viagem. Uma viagem com amor e morte, que são os grandes temas da poesia, mas onde a própria poesia é, de facto, o tema. Essa enigmática figura que nos surge amiúde referida sob o pronome “você”. Mas toda esta viagem é-nos servida com diversas referências culturais e com o registo crítico e irónico que, quase direi, são a imagem de marca do autor.

Para concluir, porque o poeta não permitiu ao amante viver até ao fim do filme, deixando essa revelação exactamente no dístico derradeiro, afirmando a sua morte na coxia, permitam-me que descubra um porto. Por isso, deixo-vos um poema, um poema que tem como título um espaço bem concreto: “Porto 1”:

Um dia, a palavra fez-se carne.
Ou sucedeu justamente o contrário?

Obrigado


(1) LOURENÇO, Eduardo – “O poeta na cidade, hoje”, in Jornal de Letras, de 24 de Setembro de 2008, pág. 39

(2) Edium Editores, in http://ediumeditores.wordpress.com/proximos-lancamentos/ (último acesso a 2008.12.15)
(3) PESSOA, Fernando – Obras Completas III, RBA, 2006, pág. 199

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

[no livro]

no livro
dos sinais

repousa
o mestre

dorme
rente
à pedra
por esculpir

o teu olhar

cinzel
em movimento
circular

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

[no limite]

no limite
o cântico expresso
na extrema luminosidade
do silêncio

aves que promovem
nos beirais da luz
a candura do poema

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

[no limite]

no limite

existirá
um só
instante

um suspiro
preso

uma breve
incandescência

um esboço
de um começo

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

[no íntimo]

no íntimo

o poema
é riacho

correndo
buscando

um corpo

caudal
imenso

o saber
do sal

domingo, 14 de dezembro de 2008

[no início]

no início

somente
o gesto

hábil
construtor
de silhuetas

formas
que se formam
imensas
intensas

que na argila
primordial
se elevam

para teu espanto
e encantamento

sábado, 13 de dezembro de 2008

[no êmbolo]

no êmbolo
inicial

se esculpe
o corpo

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

[No despertar da noite, o silêncio]

No despertar da noite, o silêncio
percorre fundo os sentidos,
acorda-os,
enquanto aguardo que um fugidio
pássaro
passe rente ao olhar.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

[no cume]

no cume
do monte

o regresso
se delineia

ténue
e perecível

como uma folha
que teima
em cair

ou a esvoaçar
no regaço
do vento

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Prefácio - "O áspero hálito do amanhã" - Alberto Pereira (Edium Editores, 2008)

"O áspero hálito do amanhã"
Alberto Pereira
Edium Editores, 2008


Nota breve


Este “O áspero hálito do amanhã”, que tem agora entre mãos, apresenta-se estruturado sob três ciclos autónomos: “Dói-me a utopia”, “Arquipélago da loucura” e “Mordem pincéis nas palavras”.

Mas esta aparência autónoma é exactamente isso: meramente aparente. É uma ilusão elaborada como hipótese de caminho, de uma via a seguir no processo criativo. Uma demanda em que o criador se veste como usufruidor da criação artística para, posteriormente, proceder à recriação: erguer dentro de um corpo um corpo outro.

Talvez por isso Alberto Pereira tenha escolhido, como epígrafe a este seu volume, um dístico de Pedro Sena-Lino onde este menciona:

Não somos feitos de pele,
somos feitos de feridas.


algo que nos abre o corpo, que nos incita ao doloroso processo da indagação. Essa dor presente logo no título do primeiro movimento: “Dói-me a utopia”.

Mas que dor é esta que a ferida em nós desperta?, é, na minha leitura, a dor essencial vista como purificadora da oficina para que o processo criativo se possa iniciar.

Não sei como dizer-me que és um hemisfério de desejo
afogado na nudez da memória

Pelo que a ferida de que somos feitos radica no centro de nós, a nossa própria memória, espaço privilegiado para a edificação da obra sentida como “hemisfério de desejo”.

No entanto, não basta preparar o espaço e deter a consciência da possibilidade do erigir em obra o que em si, “na nudez da memória”, se intui existir. Há portanto que possuir os instrumentos e a estes atribuir as funções necessárias para dar continuidade ao processo criativo.

Surge-nos então o “Arquipélago da loucura”, conjunto de corpos, como a própria palavra arquipélago indicia, cada um com as suas especificidades, mas que formam um todo.

Mas este é um todo em mutação, onde “a abrupta harmonia na quietude do imperceptível”, que se descobre quando “O tempo acende o sono dos sorrisos e a cada dia que passa nascem ilhas”, novos artefactos porque novas são as necessidades para o desvelar da obra, é um arquipélago que cresce a cada passo sob o olhar atónito do criador.

Há a oficina e os instrumentos e a obra surge no derradeiro movimento: “Mordem pincéis nas palavras”. O que aí leio é um contínuo diálogo, quase intertextual com os mais diversos quadros, imagens que foram reavivadas, resgatadas à memória.

Aí Alberto Pereira lança mão ao que elaborou anteriormente para nos trazer uma partilha, não de meras impressões, mas, tal como mencionei, do que é fruto de um intenso diálogo com o objecto de arte, o que desta existia em si e do seu próprio contexto.

Um criador, que assume a função da fruição, do outro em si, para erguer, recriar e nos brindar com este “Áspero hálito do amanhã”.



Coimbra, 25 de Outubro de 2008

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

2008-12-06 – Auditório do Campo Grande, Lisboa - Apresentação de “Arquitectura de um fragmento”, de Betty Branco Martins (Edium Editores, 2008)

Antes de mais, embora sabendo que me vou novamente repetir, mas há repetições que nunca são em demasia, agradeço a vossa presença neste sábado de inverno, sábado de um fim de semana prolongado, ainda por cima com o natal já ao virar da esquina.

Esta vossa opção é para quem escreve algo que significa muito. Quem escreve dá-se em cada caractere, mas só se pode dar quando há quem receba. Daí o meu muito obrigado.

Ora bem. Quando abri o ficheiro deste “Arquitectura de um fragmento”, antes de tudo, o que pensei foi: “coitado do paginador, vai ver-se grego para o compor”.

No entanto, isso é um problema que ele teria de resolver. Não era um problema meu. Como tinha e continuo a ter confiança na decisão dos meus pares que constituem o que nós chamamos de painel de autores Edium, que analisam e emitem o seu parecer sobre as obras que esta edita, atrevi-me a ler, isto antes de comunicar à autora a decisão tomada.

Devo-vos dizer aquela frase feita: primeiro estranha-se, depois entranha-se. Este livro de Betty Branco Martins é, na minha opinião, uma das mais interessantes obras de poesia que a Edium editou no decurso deste ano de dois mil e oito.

Naturalmente que esta minha opinião é exactamente isso: é minha. Mas sendo minha teoricamente nada teria a ver com o impacto inicial causado pela componente visual com que a poetisa espraia o seu texto pelo tradicional branco da página, antes seria o reflexo do conteúdo com que nos incita à leitura e, sobretudo, à reflexão.

Mas não é bem o caso. Esta forma de construir o seu registo, este corpo desenhado para cada poema, dá-nos uma dimensão diversa, uma espécie de guia, de mapa, talvez um moderno g.p.s. para uma nova forma de respiração do verso.

A sua mensagem alia-se portanto a uma cadência interna, não por uma opção silábica, mas por uma estrutura gráfica que leva o leitor a descobrir um ritmo melódico deveras curioso.

Mas que arquitectura e que fragmento, sobretudo este último, dado ser indeterminado. É um fragmento, não o fragmento.

Por definição, arquitectura é a arte de levantar construções de toda a espécie. Por seu turno, fragmento é cada uma – novamente o indeterminado – é cada uma das partes em que se separou um objecto que rompeu ou partiu.

Mas fragmento é parte de um todo, melhor: é a memória desse todo. A prova inequívoca da passada existência de um todo.

Talvez por isso a poetisa procure para a elaboração desta arquitectura de um fragmento um registo intertextual. Dou-vos dois exemplos presentes nos poemas sugestivamente intitulados “O que querem os deuses” e “O ____ Deus _______ das pequenas coisas”.

No primeiro, Betty Branco Martins escreve:

"tens uma faca nos dentes"

No segundo, é o próprio título: “O ____ Deus _______ das pequenas coisas”.

No primeiro exemplo, sinto a alusão a António José Forte que em mil novecentos e oitenta e três publica um livro sob o título: “uma faca entre os dentes” e, no segundo, a presença de Arundhati Roy que no ano de mil novecentos e noventa e sete recebe o Booker Prize exactamente com uma obra que, na sua versão portuguesa, se intitula “o deus das pequenas coisas”.

Com isto, naturalmente segundo a minha leitura, pretende Betty Branco Martins dar-nos a sugestão de quão preciosa é a nossa memória, desta feita aquela que se ergue através da cultura.

Mas a poetisa vai mais longe, não se resume à cultura nada na literatura, antes viaja para o desvelar deste fragmento por outras artes:

Pela música, por exemplo, leia-se no poema “Palhaço” a referência a:

“[Quasi una fantasía]_Beethoven

ou pela pintura, como se pode ler no poema: “Instantes __________ d’alma”:

“_____________________________________________________ ouvia
flores __________ primavera. no nascimento de Vénus feito por Botticelli


São de facto referências, marcos geodésicos para o implementar de todo o projecto de arquitectura. Betty Branco Martins desafia-nos, já dentro do próprio corpo poético, à recolha de cada um destes fragmentos para o decifrar do fragmento inicial.

Mas a poetisa não resume a sua construção futura à memória, isto porque, tal como escreve no poema “[IN]sentidos___na sede”,

“_____o caminho para o poço
não significa
o fim da nossa sede


Há portanto que desbravar os próprios mistérios da arte, neste caso, da escrita. Os artefactos, as regras com que se tornaram possíveis não só o recuperar do tempo, mas o edificar do tempo presente e futuro.

A escrita, a arte, torna-se tema. Leia-se, como exemplo, no poema: “Instantes __________ d’alma”, o seguinte:

numa contemplação do artista __ contínua da natureza __ pois é impossível para ele reproduzir com a mão a partir do natural ___ se não forjou primeiro na imaginação ___ e para fazê-lo precisa estar muito atento ___ pois os movimentos da alma só se manifestam por instantes ___ muito breves

Há necessidade para o erguer da obra de possuir mecanismos que sejam capazes de captar esses instantes, esses muito breves instantes. É essa a demanda que podemos vislumbrar em diversos momentos neste “Arquitectura de um fragmento”.

Mas este livro cativou-me sobretudo por um motivo. A arte não está dissociada da vida, muito antes pelo contrário. Ela é o reflexo da vida. E sendo-o, o que faz arte não pode, nem deve, como se costuma dizer, assobiar para o lado, fingir que não vê o que o rodeia.

Betty Branco Martins faz, também, da sua poesia uma arma contra o silêncio e a indiferença. Leia-se o poema “A ___ única ___ testemunha” ou “A ___ terra ___ às avessas”. São poemas com imagens fortes, poderosas a que ninguém pode ficar indiferente. Do segundo, retirei esta quadra que agora vos leio.

O sol ficou prisioneiro
Dalguns ___ que disseram ser seus compradores
A chuva em cestos de verga ___ era o seu dinheiro
Leveza dos sonhos ___ mortos pelos senhores


Ou do poema “estão vazias __ vazias”, este verso:

Povo de bolsos vazios. d'onde roubaram tudo __ até o cotão

Arquitectura de um fragmento” é de facto um livro que vale bem a pena decifrar.

Muito obrigado

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

[No centro das sombras, a vida]

No centro das sombras, a vida
percorre os meandros da morte.
Talvez como o olhar que procura
refúgio em partos de espanto.
Ou uma ave que arrisca seu voo
por sobre os canos da espingarda.

domingo, 7 de dezembro de 2008

[no casulo]

no casulo
espera

que o vento
te toque
na pele

e abre
amplo
o olhar

para que sintas
da luz
o terno
abraço

de súbito
aprende
célere
a arte
secreta
da respiração

indaga
as asas
e voa

voa
para onde
o desejo
te indicar

sábado, 6 de dezembro de 2008

[Neste cinzeiro, deixo os restos do]

Neste cinzeiro, deixo os restos do
tempo. Talvez espera, esperança ou
somente esta memória de estar
aqui sentado à mesa do poema.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

[Nasce rente ao desejo. Asa o corpo]

Nasce rente ao desejo. Asa o corpo.
A viagem rumo a uma
luz eterna. Enceta
a demanda. Aprende
o ofício
da respiração.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

[nasce]

nasce
o poema

renasce
a palavra

desperta
em sentidos

no ventre
do teu sentido

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

[Nas trovas que canta o vento]

Nas trovas que canta o vento,
há uma voz habitada
de ternura e sentimento;
de poente e de alvorada.

Há uma voz feita cor,
aguarela de sentidos,
onde loucos por amor
andam os sonhos perdidos.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

[Nas ondas do mar de Vigo]

Nas ondas do mar de Vigo,
vi Martim Codax cantar
no corpo da barca, amigo,
que baila na voz do mar.

Eu, em Vigo, vi Martim
Codax olhando o mar,
olhando este mar sem fim,
com vontade de embarcar.

E, na rede desse olhar,
vi o corpo da Fortuna:
uma sereia a cantar
no vento que a vela enfuna.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

[não quero bilhete. não quero]

não quero bilhete. não quero
bagagem. quero o vento que
desliza célere dentro de
mim. viajar, não é descolar
o corpo pelo espaço e o tempo,
é estar onde o sonho deseja.

domingo, 30 de novembro de 2008

[Não há soneto como o que em primeiro]

Não há soneto como o que em primeiro
escreves. A palavra bem medida.
O verso generoso. Onde até a vida
rima com tudo. É nobre, audaz guerreiro.

Paladino de justa causa. Obreiro
de poesia à flor da pele sentida.
Doce sílaba alada, enternecida
pelo canto de Sirene qual barqueiro

que enlaça o seu destino ao coração.
As palavras são virgens com o cio
sedentas navegantes deste rio.

Meu soneto, o primeiro, que emoção
transpirava de cada verso erguido
como cometa errante e ensandecido.

sábado, 29 de novembro de 2008

[nado]

nado
o gesto

a obra
de dédalo

o fruto
ergue-se

e lança
seu olhar

rumo
ao sol

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

[na vida]

na vida
há um instante
de eternidade

um momento
de paixão

um corpo
de outro corpo
se desprende

se liberta
e ganha asas
se desejar

arriscar

o voo

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

[na queda]

na queda
da máscara
se desenlaça
a noite

no imenso
sonho
se revela
a face

o rosto
puro
antes oculto

agora
redescoberto

único
e verdadeiro

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

[Na navegação estelar]

Na navegação estelar
o tegumento do sonho
para que ases a memória
do futuro.

terça-feira, 25 de novembro de 2008

[na face das folhas]

na face das folhas
há um verso
a decifrar
e que descreve
a queda outonal

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

[na esfera do tempo]

na esfera do tempo,
o último cálice.
breve instante onde ausente
descubro a memória
da partida

domingo, 23 de novembro de 2008

[na epiderme]

na epiderme
da memória

a ferida

a cicatriz
desenhada
pela mão
do sol poente

sábado, 22 de novembro de 2008

[na ardência]

na ardência
do olhar

reside
o poema

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

[migra]

migra

há uma outra
paisagem

para lá
do olhar

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

[Meu amor, que canção te canto agora]

Meu amor, que canção te canto agora,
que partiste no dorso da palavra,
amor, sem poesia desta lavra
que fizemos por nossa vida. Embora

foste sem o poema por esta hora
tão longa, eterna, infinda. Que reabra
a esperança, o retorno, o poema. Abra
o sentir, o momento em que a mão aflora

o ventre da metáfora e pressente
o corpo desse verso por nascer.
Mas que poema, amor, que poesia

há sem que teu olhar em voo rente
reencontre a beleza de reter
um verso em nossas mãos somente um dia.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

[mãe]

mãe
adormeci no teu beijo
que o pai natal da infância
na peúga me deixou

terça-feira, 18 de novembro de 2008

[longe de tudo, como uma ave em fuga]

longe de tudo, como uma ave em fuga,
o corpo eterno
liberto da matéria, do peso
da matéria.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

[longe]

longe
a voz

teu corpo
evola
no infinito

domingo, 16 de novembro de 2008

Prefácio - "A metáfora das asas", Manuel C. Amor (Edium Editores, 2008)


"A metáfora das asas"
Manuel C. Amor
(Edium Editores, 2008)

Nota breve

Como escrever um prefácio a um livro quando o próprio poeta, embora sob pseudónimo, insere um poema sugestivamente intitulado: “Como se fosse um prefácio”; e que decididamente nos desafia para o desbravar da obra?

Não sei qual é a resposta, mas o que sei é do privilégio de escutar o coração da terra no coração de cada poema.

Talvez por esse motivo, ao ler este “A metáfora das asas”, senti que observei o poeta na sua condição de exilado, longe das coisas mais simples, mas que são o cerne da sua matriz, e que necessariamente se perpetuaram em si, esboçando o desenho de cada passo conquistado.

Manuel C. Amor olha para o interior de si próprio, explorando todos os possíveis compartimentos da sua memória, em busca de sons, cheiros, paisagens, afectos, mas sobretudo daquela música secreta que lhe invade a alma.

Porque o poeta vive o seu tempo e as suas circunstâncias, abraça essa matriz como quem sabe que, se o não fizer, o legado aí gerado se perderá.

Radica aí esta sua urgência, esta necessidade crescente, que se sente a cada dobra do poema, de moldar a palavra como arma.

Gritar para que seja ouvido, escrever como se escrevendo, para além do desejo de passar a sua mensagem, efectuasse a sua catarse, conferindo desta forma à sua escrita toda uma carga emotiva só ao alcance de quem viveu com intensidade o que converte em poesia.

Esta metáfora das asas, com um artigo definido a antecedê-la, é como uma impossível escultura de uma lágrima, de uma lágrima pura, que teima em cair, deslumbrada pelo eclodir da dor, mas também, ou talvez sobretudo, pela esperança que a tudo resiste.

Em suma: uma poética de combate por valores, causas a que o poeta não pode, nem quer, por respeito a si próprio, ser indiferente.

Cabe agora ao leitor decifrar esta metáfora, este sentido outro da palavra, das palavras, em suma: ler esta metáfora pelo seu próprio respirar.


Xavier Zarco
Coimbra, 3 de Outubro de 2008




















sábado, 15 de novembro de 2008

2008.11.08 – Casa de Angola (Lisboa) - Apresentação de “A metáfora das asas”, de Manuel C. Amor (Edium Editores)

Muito boa noite. Muito obrigado pela vossa presença. Um agradecimento também para a Casa de Angola por nos ter aberto as suas portas para a apresentação deste livro, o primeiro, e estou convicto, de muitos outros de Manuel C. Amor.

Uma palavra de apreço à Edium Editores por, mais uma vez, editar. Bem sei que a função de uma editora é a edição, mas a edição de poesia é sempre um acto de louvar.

Não só pelo risco, essência de toda e qualquer actividade económica, mas pelo facto de enriquecer esta Língua que une: da Galiza a Timor; de Moçambique a Cabo Verde; da Guiné ao Brasil; de São Tomé e Príncipe a Angola e Portugal.

E hoje celebra-se exactamente isto, no espaço apropriado, na Casa de Angola, numa cidade de Portugal, neste caso, Lisboa, a apresentação de uma obra de um poeta que cultiva, e cuida, estas suas duas matrizes: a angolana e a portuguesa; com que contamina o seu discurso poético.

Conheço Manuel C. Amor há um bom par de anos. Creio que foi em Leiria a primeira vez que falamos olhos nos olhos, aquando da apresentação de um dos números da Antologia Escritas.

Depois, Coimbra, num cantinho da mesa, da extensa mesa num encontro de poetas, melhor: de apreciadores de poesia; que aí, na minha cidade, aconteceu.

Aí fortaleceu-se algo que, para mim, é bastante importante: a consciência do Manuel C. Amor me fazer um favor, esse favor muito especial, de ser meu amigo.

E digo-o porque os amigos dizem o que pensam. Não ficam naquela zona estranha das meias tintas. Não há espaço para rodeios. O concordar e o não concordar fazem parte da vida.

No fundo, só através do conhecimento do sol se pode apreciar plenamente a sombra e vice-versa.

E é essa a verdadeira essência deste livro que hoje é aqui apresentado. Alguém que mergulha fundo na sua memória e resgata o que considera relevante para o erguer em obra de uma outra memória, uma memória futura.

Mas não se espere encontrar neste volume um acto revivalista ou saudosista. Antes um olhar atento que denuncia os erros de ontem e que hoje, nos nossos dias, se repetem.

O acto poético de Manuel C. Amor é, por isso, uma arma. Mas é uma arma que radica, como afirma o poeta,

Na profundidade das contradições

fim de citação. Nesse lugar onde se bebia, e passo a citar,

o sentido das palavras camufladas.

Aliás, ler poesia é um desafio maior. Não há outro género onde a palavra adquira mais valor do que este. É através da palavra poética, prenhe de música e significado, que se desperta no leitor, em simultâneo, tanto o lado sensível como o lado racional. E é capaz de acordar em nós outras fórmulas para a interpretação do mundo.

Naturalmente que me refiro à boa poesia.

Coloco a obra de Manuel C. Amor, não só este livro, mas os múltiplos esparsos que tive a fortuna de ler, neste patamar.

De facto, através do seu registro poético, temos acesso, o nosso próprio acesso a uma mundivivência plena de pulsação, mas de uma pulsação não artificialmente criada, mas verdadeira, plena de autenticidade.

Logo no título:
“A metáfora das asas” há esses indícios. Que asas são estas sob a condição de metáfora, não de uma qualquer metáfora, mas de a metáfora?

Poderemos atribuir o valor de liberdade a estas asas, nada mais normal. Aliás, a palavra liberdade surge logo no poema “Como se fosse um prefácio”.

No entanto, repare-se que Manuel C. Amor escreve, embora sob pseudónimo, que

A liberdade
é um fardo muito pesado


Ou seja: embora se possa ler este tomo sob esse signo, à luz e contraluz desse signo, estas asas, para mim, representam mais Hermes do que propriamente Espártaco.

São mais mensagem, transmissão de testemunho, do que liberdade, quebrar dos grilhões.

E porque referi duas personagens da cultura clássica europeia, talvez o que melhor se enquadra nesta minha leitura de
“A metáfora das asas” não é Dédalo, embora este saiba do perder de algo precioso, o seu próprio filho: Ícaro; pelo que se tornaria urgente o passar da mensagem do erro, sequer por ter cumprido o seu objectivo, mas Sísifo, a figura de Sísifo.

Pelo menos este leitor, logo neste terceto o descobre. Passo a citar:

Há um gozo insano
no contestar
o que se perdeu outrora


ou noutro excerto pode ler-se o seguinte:

Falem-me do canto de rouxinóis
eu falarei de um outro canto

aquele que emerge do fundo
das almas angustiadas

ou, porque a sabedoria popular diz que não há duas sem três, escute-se o seguinte:

regresso à memória da matriz
para encher os olhos de sol.

Mas o certo, naturalmente que o certo aqui é o meu certo, é a inversão da leitura do mito de Sísifo efectuada por Albert Camus. Não é nesta obra o tempo de reflexão, o tempo de contemplação, o período que medeia o chegar ao topo e o regresso ao vale.

Antes é o próprio esforço de levar a pedra, a mensagem, até ao cume do monte. Torná-la alcançável ao homem, a todo e qualquer homem.

Mais do que isso: é o próprio instante da pedra, da mensagem, no cume do monte. É o abrir do livro, verdadeiro eclodir do poema.

Este é o instante mágico em que o ofício do poeta se expõe para a possibilidade do ofício do leitor. Ambos se municiaram dos mesmos artefactos: as palavras. Cada um com a sua própria forma de delas tirar proveito. Ambos as sentem como suas nesse instante.

E o jogo de tese, antítese e síntese torna-se o verdadeiro mecanismo depurador da mensagem, a metáfora que eu, leitor, leio na palavra asas.

Muito obrigado.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

[Lego-te esta chave]

Lego-te esta chave.
Esta pedra de roseta
de Champollion.

A decifração
do antigo alfabeto do mundo
para que sintas o pulsar
do tempo.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

[lega]

lega

o derradeiro
gesto

a um mor
silêncio

cada palavra
dita

teria
o peso
do tempo

somente
parte

uma barca
espera

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

[Já nada sei. O que sou, não o]

Já nada sei. O que sou, não o
sou por mais de um segundo.
Meu gesto progride à velocidade
dos espelhos, ao ritmo do olhar.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

[Junto ao poema]

Junto ao poema
a chave
sob o tapete de palavras
inauguradas
rente ao teu olhar.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

[Irrompe do silêncio]

Irrompe do silêncio
um cântico de cítara.
A breve espuma
de uma memória que se esvai.
Repara: no travo do mar
não há sal,
só absinto e retorno.

domingo, 9 de novembro de 2008

[invade]

invade
a aorta da memória

o silêncio

esculpindo o vazio
na tez
de cada instante

sábado, 8 de novembro de 2008

[indaga]

indaga
a penumbra

suas vestes
traja

e sente
em tuas mãos

o supremo
parto

das estrelas

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

[incendiada]

incendiada

a palavra
é um mundo

mãe
que se abre

ao parto
dos sentidos

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

[imagina]

imagina

há nas tuas mãos
argila por moldar

uma forma
que enseja

brotar

sob o teu olhar
criador

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

[imagina]

imagina

e vai
para além
dos sentidos

mergulha
fundo
dentro da alma

regressa
ao útero
ao cosmos

em ti
reside
a linguagem
dual

música
e matemática

sentir
e pensar

a arte
de comunicar
com o universo

terça-feira, 4 de novembro de 2008

[iludem-se]

iludem-se
as mãos

na ilusão
malabar

o movimento

a elipse

não é mais
que o teu destino

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

[hoje abrirei uma janela]

hoje abrirei uma janela
um pouco a medo

a luz extrema poderá
entrar

e cegar
as palavras

todas as palavras

que o sonho
e a vontade geraram

domingo, 2 de novembro de 2008

[havia]

havia
um gesto
a encetar

indagar
o toque
na matéria
disforme

sentir
o pulsar
da vida

na face
da terra

onde o poema
germina

sábado, 1 de novembro de 2008

[Habito o poema. A música]

Habito o poema. A música
do poema. A palavra brilha fértil
seara cintilante
que se descobre em tua alma.

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

[Habito esta palavra, este momento]

Habito esta palavra, este momento
Porque sou da memória afluente,
Galeria de imagens que, pungente,
Recorda-me da vida se me ausento.

Se ganho corpo alado e abraço o vento
Sem passado, futuro, só presente
Porque me abre esse tempo confidente
Esse olhar que me prende aqui. Que alento

Acalento se nada é tudo e pouco
E cada fruto amargo e doce. E sinto
A voragem do tempo incluso em mim

Como âncora, grilhão. Que diro e louco
Este instante em que o verbo como absinto
Se conjuga bebendo até ao fim.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

[habita o teu corpo]

habita o teu corpo
que este será o teu casulo
para que a crisálida
que és
seja águia
desejo de voo rasante
por sobre as águas do teu nome

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

[há um mar a navegar]

há um mar a navegar
um imenso mar azul a demandar

ilhas e continentes
rotas de tecidos
e exóticos sabores

caminhos urdidos na face
das ondas
na espuma do sonho

velas enfunadas
pelo vento da esperança de chegar
ou de partir
porque o desejo é partir

fazer do corpo barco
dos membros artefactos
do olhar instrumento náutico
das mãos
cartografia secreta
de paisagens
nunca dantes avistadas

porque há um mar
e um travo de sal na boca
do próprio poema

o que falta
é levantar âncora
sorver a distância
de um só trago

e navegar

terça-feira, 28 de outubro de 2008

[há um barco na distância]

há um barco na distância
dista de mim somente um desejo
o desejo
de regressar

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

[há que sentir o fogo do olhar]

há que sentir o fogo do olhar
por sobre o tegumento
do cosmos
e saber dominar a nobre arte
dos construtores do silêncio
para que a memória
seja qual templo
onde se festeja
a própria vida

domingo, 26 de outubro de 2008

[há na voz]

há na voz
que surge
vozes
de outros tempos

memórias
que se fundem

e renascem

na voragem
de um poema

sábado, 25 de outubro de 2008

[Há dor aqui]

Há dor aqui.
Sente-se no traço
com que se perdura
o momento.

Na silhueta esbatida
do poente.
No perdido olhar.

Na estrofe cantada
em cadência e movimento.

Há dor aqui,
no silêncio colhido.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Lições de Eros / Lições de Thanatos





Pois é!, é já amanhã, no Orfeão Velho, Recreio dos Artistas, em Leiria, pelas quinze e trinta, que é apresentado o meu novo título: "Lições de Thanatos".

Mas mais relevante do que ser o meu novo título, é o facto de este ser um livro de dupla capa, tendo a outra entrada: "Lições de Eros", de José Félix.


Um livro assim vale sempre a pena ler, desbravar e criticar.


É um tomo que se abre ao diálogo entre o vida e a morte, entre dois autores, mas sobretudo entre os leitores que podem nele descortinar o verso e o reverso reflexivo, mas dentro da própria matéria com que se ergue a poesia.


Quem puder, não falte a este lançamento. Uma obra sob chancela da Edium Editores. Bem sei que sou suspeito, mas estou em crer que vai ser um bom instante.


E tanto assim é que há mais um argumento extra para não faltar: Paulo Afonso Ramos e o seu "Mínimos instantes".


Dois ou três mais do que bons motivos para ir até Leiria. Se não for pela poesia, que seja pelo Castelo, a Sé, a gastronomia...








quinta-feira, 23 de outubro de 2008

[guarda]

guarda
este silêncio

cada pedra
é parte
de um mundo

de um elíptico
movimento

alfa
e omega

no mesmo
instante

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

[gérmen]

gérmen
de poema

a pedra

táctil
corpo
prenhe
de secretas
formas

vaso
onde o sangue
queima
nas mãos
do escultor
das palavras
e dos sentidos

terça-feira, 21 de outubro de 2008

[fosse mão]

fosse mão
o que elevasse o corpo
e seria mão de vento
acariciando
os flancos do silêncio

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

[eu canto a canção do mar]

eu canto a canção do mar
em versos ondas de azul
nas cartas de marear
traçadas com rumo ao sul

eu canto o corpo da pedra
esculpida pelo vento
o sal a espuma que medra
pelas mãos do firmamento

domingo, 19 de outubro de 2008

"Erótica pornográfica", de J. J. Sobral - Nota de Leitura



Depois da descoberta do excelente poeta Joaquim estevez da Guarda, com o seu: "Llama de amor viva", eis que me surge na caixa do correio: "Erótica pornográfica", de J. J. Sobral, numa edição da Eros Poética, 2007.
Se Joaquim Estevez da Guarda nos brinda com sextinas, J. J. Sobral, vai buscar a magia e a musicalidade da quadra septassilábica para a elaboração dos seus poemas.
Pelo título se poderá concluir estarmos perante poemas de cariz erótico e / ou pornográficos. Certo, certo é que ao lermos este tomo descobrimos rapidamente ser um volume extremamente bem estruturado, mas cujo conteúdo é mais pornográfico do que erótico, mas também muito mais humorístico do que pornográfico.
Um poemário que nos faz rir, que nos transporta para uma visão particular do mundo sob o signo do sexo, do acto sexual. No fundo, no é esta uma das nossas mais relevantes actividades?
"Erótica pornográfica" é, ao longo das suas duzentas e vinte e quatro páginas, uma obra de arte, edificada para a plena fruição do leitor, daquele que sabe do poder da palavra, mesmo que esta possa ser aquilo que, por pudor (muita das vezes pudor fingido), não se pronuncia.

sábado, 18 de outubro de 2008

[este projecto]

este projecto

a demanda
de um olhar

o dealbar
das asas
nadas

no rumo
de um cinzel

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

[esta queda anunciada]

esta queda anunciada
como grito à flor da boca

este desespero
de estar perto
e longe ao mesmo tempo

esta palavra
pedra bruta
onde o poema nasce
e a canção explode

este murmúrio infindo
onde a memória
procura refúgio
e o silêncio é mortalha

este recanto
onde o amor
em tempo de guerra
se consumou

este impossível quadro
que em requiem
se tornou

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

[Esta é a safra. O corpo curvado]

Esta é a safra. O corpo curvado
conjugando a terra. A mão
firme na haste do silêncio.
O movimento circular
antes da ceifa. Eis o quadro
com o sol a pique.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

[Esta é a minha alma]

Esta é a minha alma
exposta flor
que medra
no recanto do olhar
quando te vejo
e o cosmos ensejo

terça-feira, 14 de outubro de 2008

[Escuto longe o bater das]

Escuto longe o bater das
ondas nas rochas. O traçar
de um rosto. A paciente obra do tempo.
Escuto as tuas palavras e
sei que um dia farás parte do corpo
a que dás vida, a quem
esculpes a alma.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

[escuta a canção das ervas]

escuta a canção das ervas
na vertigem
de demandar o sol

domingo, 12 de outubro de 2008

[escultor de horizontes]

escultor de horizontes
eternamente renovados
no dorso do fogo
o breve poema se eleva
do seu cárcere
de papel
para sobre o mundo
brilhar e
comunicar com o cosmos
e sentir a face
de deus
e nomeá-lo

sábado, 11 de outubro de 2008

[escrito]

escrito
o poema

amálgama
de palavras

inerte
corpo

ocultos
sentidos

se não
o despertares

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

[escrevo]

escrevo

a mão
desperta

ao sonho
de voar

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

[esboço]

esboço
de temporal

o voo
da gaivota

rente
à semente

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

[esboçar]

esboçar

a ave
em voo

ou o voo
da ave

terça-feira, 7 de outubro de 2008

[Erguem-se vozes no voo da]

Erguem-se vozes no voo da
semente. Pungentes, os sentidos
enlaçam-se. Enredam-se. Fina,
ténue teia desvirginando
o útero da palavra.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

[era criança]

era criança
e sonhava

agarrou
o poema

e foi
com as aves

no dorso
do olhar
sem tempo

domingo, 5 de outubro de 2008

EPITALÂMIO

EPITALÂMIO


inventam êmbolos
os corpos
que se descobrem
sob o cobertor da noite

há um segredo
que se partilha
na respiração contida

um momento
em que o olhar se perde
e se revoltam os sentidos
quando demandam o corpo em chamas

e silenciam a dor
de se perderem
por um só instante

sábado, 4 de outubro de 2008

[entre o desejo e o ser]

entre o desejo e o ser
há um sorriso
uma candeia desperta
e pendente
entre a máscara e a face

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

[entre margens]

entre margens
o corpo do rio
como ave
desenhando a fuga
dentro do olhar

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

[entre extremos]

entre extremos
as palavras

promessas
de sentidos perdidos entre o branco
de uma página

em branco

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

[entra no poema como]

entra no poema como
se sulcasses o mar imenso do
desejo. cada palavra
é onda percorrendo
os sentidos que ao intenso
corpo da rocha de tua
memória cinzela a vento, a mar
e a sonho a estátua do momento.

terça-feira, 30 de setembro de 2008

[entoa]

entoa
a canção
do mar

com o mar
ao fundo

do mar
oculto

do mar
em tuas mãos

de búzio

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

2008-09-27 – Auditório C. M. Amadora - Apr. de “Mínimos instantes”, de Paulo Afonso Ramos (Edium Editores, 2008)

Agradeço a vossa presença, como é, aliás, obrigação de todos quantos estão ligados à Literatura. Sem leitores não há, de facto, livros, mas objectos criados com intuito decorativo.

Um livro, quando nasce, é para ser lido. É um acto de partilha de sensações e ideias, de uma forma específica de olhar e interpretar o mundo. Daí, o meu sincero obrigado.

Agradeço também à Câmara Municipal da Amadora o facto de permitir esta apresentação neste seu espaço.

Naturalmente que também agradeço à Edium Editores por mais esta sua aposta, mas, sobretudo, por existir. Sei que não quer ser grande, mas, pelo trabalho que tem desenvolvido, queira ou não queira, já o é.

Bom, mas é ao Paulo Afonso Ramos que devo um agradecimento especial. Não por me ter convidado para escrever o prefácio deste seu livro ou pelo desafio de o apresentar, mas pelo favor que me faz em ser, de facto, um camarada.

Conheci-o no Alvito, uma das mais belas vilas deste nosso país, aquando da apresentação do meu “
O livro do regresso” e do título “Da humana condição” desse grande poeta de Língua Portuguesa que é José-Augusto de Carvalho.

Não satisfeito com os ares diurnos alentejanos, acompanhou-nos pela noite dentro até outra sessão em Viana do Alentejo. Diria a má-língua que a dúvida reside em saber se era a Poesia ou a Gastronomia – melhor: o jantar e a necessária digestão de tão aprimorado repasto; o que o fizera percorrer aqueles caminhos de além-tejo.

O certo é que tem sido uma presença constante via telefone, o que me leva a supor – e que se confirma em diversas ocasiões - que partilhamos algo de importante: a militância; a vontade de fazer chegar o mais longe possível o que vamos e que os outros vão escrevendo.

Mas uma coisa é certa. Neste pormenor não há quaisquer dúvidas: só a indústria farmacêutica não o deve ter em grande conta. No fundo, desviou um mais do que potencial cliente dos célebres medicamentos para dormir. Esse mais do que certo cliente era eu. O que esperava para carregar no botão para actualizar o seu blogue. Pois bem, o Paulo Afonso Ramos, ensinou-me a programá-lo pelo que ganhei uns bons minutos extra de sono diário.

Por fim, a boa disposição e a capacidade de comunicação fazem do Paulo Afonso Ramos alguém com quem vale a pena conversar. É alguém que confere à sua escrita estas preciosas características.

Por tudo isto, e muito mais que poderia aqui dizer, é, para mim, com bastante agrado que vim apresentar este seu novo livro: “
Mínimos instantes”. Até vos confesso que se outra pessoa aqui estivesse a fazê-lo sentir-me-ia com um pouco de inveja. O Paulo bem merece a nossa presença.

Ora bem, “
Mínimos instantes”. Como epígrafe a esta leitura, permitam-me que utilize um dístico do poeta Albino Santos retirado do seu livro, que em breve a Edium Editores apresentará, intitulado: “Madrugada sem fronteiras”. Albino Santos escreve o seguinte:

É no sonho
que o instante se faz eterno

Pois bem, poderia acabar aqui e agora a apresentação do livro “
Mínimos instantes”, de Paulo Afonso Ramos. De facto, estes versos de Albino Santos sintetizam quase na perfeição o muito que se pode descobrir ao ler este volume.

Temos a dimensão onírica, o instante e o ensejo de esse instante se prolongar no tempo.

Mas temos sobretudo aquilo que torna possível uma possível descrição do instante: a palavra. Palavra que Paulo Afonso Ramos recria constantemente porque a respeita como organismo vivo, possuidor de respiração própria, capaz de interagir com as outras palavras.

Mas essa percepção de interacção só se torna possível porque existe quem as decifre, quem as leia.

Como escreve Paulo Afonso Ramos, e passo a citar:

Deixo-me nas palavras...
Entrego-me ao sabor de quem as lê

E é curioso este excerto que vos li. Uma frase hexassilábica seguida de um decassílabo, como se nos anunciasse, tal como nas odes – as alcaicas assumem estas características dado serem compostas por hexassílabos e decassílabos; da profundidade temática.

Refiro esta circunstância dado a mesma ocorrer por diversas vezes neste volume como, por exemplo, esta outra, e passo a citar:

A noite sedutora teve-me nos seus braços de capim

Ou seja: há por parte do autor o cuidado ou a necessidade de atribuir, em determinadas circunstâncias, um certo ritmo, ritmo esse capaz de acordar uma certa ligação entre a componente emotiva e a componente racional do leitor ou, mais concretamente, do decifrador do texto.

É a palavra a assumir o papel primordial neste “
Mínimos instantes”.

Como há pouco referi, um livro necessita de leitores, tal qual aquela célebre expressão popular, como pão para a boca. Entre as diversas opções de registro possível, a escolha de Paulo Afonso Ramos é, na minha óptica, esta: um remetente, um destinatário.

Ou seja, na visão do leitor, que eu sou, o autor ponderou sobre a palavra, mas por mais ardiloso que seja o seu uso, isolada esta de pouco ou nada vale. Havia que encontrar o meio, o veículo mais adequado para a reactivar, para a retirar do seu estado, digamos assim, letárgico.

Assim, Paulo Afonso Ramos opta pela tal máxima que há pouco aludi: um remetente, um destinatário; recorrendo neste seu “
Mínimos instantes” a um registro que qualifico próximo do epistolográfico.

E esta é, na minha leitura, a forma mais apropriada de comunicar. Embora hoje estejamos habituados a esta coisa do e-mail, o certo é que há uma certa magia em torno de uma carta.

E esse é o prazer que o Paulo Afonso Ramos oferece ao leitor, o seu imaginário destinatário, mesmo que concreto ao autor este seja.

É nesta encruzilhada que situo este seu livro. Cada um de nós pode, portanto, optar pelo caminho que desejar porque diversas são as hipóteses que se abrem ao virar de cada página.

Obrigado.

domingo, 28 de setembro de 2008

Prefácio - "Mínimos instantes", de Paulo Afonso Ramos (Edium Editores, 2008)


"Mínimos instantes"
Paulo Afonso Ramos
(Edium Editores, 2008)


Prefácio


Desde os primórdios da Humanidade que o Homem entendeu querer desvelar o Tempo. Mesurá-lo de forma a controlá-lo. No entanto, o feitiço virou-se contra o feiticeiro e o Homem tornou-se num quase escravo do Tempo.

Isto surge a propósito de uma velha questão. Há alturas em que pondero se posso de facto ler este ou aquele livro, se tenho naquela altura o tempo suficiente para o fazer. Muitos são os que se vão acumulando, sobretudo para o período das férias. E tudo porque há coisas na vida que têm muito mais valor do que a literatura: a família, mas, sobretudo, os filhos. Por isso, há que optar. E eu, como qualquer outra pessoa, opto.

Escolho livros para a leitura imediata que sejam de fácil transporte. Tenho aí a vida facilitada porque, por norma, os livros de Poesia são de pequenas dimensões.

Neste momento, deve estar o leitor a pensar do por quê de um prefácio escrito com este conteúdo, mas imagine, imagine que tem de utilizar transportes públicos para ir e voltar de casa para o trabalho e do trabalho para casa.

Imagine que até dispõe de uns bons quinze minutos no início da manhã antes de picar o ponto.

Imagine que na hora de almoço lhe sobram mais uns dez minutos antes de regressar à labuta e até está num daqueles dias em que a melhor companhia de todas é exactamente aquela pessoa que todos os dias vê ao espelho.

Imagine que o autocarro ou o combóio demora mais uns cinco minutos para chegar.

Agora, opte entre o que poderá fazer nessa meia-hora da sua vida. E tudo, porque, imagine, não tem hipóteses de fazer aquela viagem de ida ou de volta sentado. Porque aí sempre tem mais uns minutos para agregar à contabilidade do tempo, do tempo que lhe escorre entre os dedos.

Talvez por tudo isto, mas sobretudo pelo que encerra este livro de Paulo Afonso Ramos, sugestivamente intitulado “Mínimos instantes”, enquadra-se no que se pode ler exactamente nesses momentos da nossa vida.

São pequenas histórias, mas grandes na intensidade, na reflexão, na paixão com que o autor se entrega a desenhar cada quadro. Tudo, mas servido na exacta medida do tempo, do nosso tempo quotidiano.

No entanto, não se iluda pela disposição gráfica dos mesmos. O seu registro de linguagem aproxima-se mais da Poesia, tal é o grau de elaboração empregue por este verdadeiro poeta, mas que aparentemente nos surge ao olhar como prosador.

Paulo Afonso Ramos é um verdadeiro pintor por palavras. Dá-nos, através do seu registro, sensações, sentimentos e reflexões sobre o seu próprio caminhar, sobre o que observa e que nos lega pela escrita.

Fá-lo de uma simples e cristalina, sem carambolas. E fá-lo porque sabe o quão precioso é aquele mínimo instante que possuímos para nos determos perante um texto.

Agora, fala a voz da experiência, lê-lo é assumir o risco do virar de página e só sair na paragem seguinte, mas é aí que reside o encanto da sua palavra, o saber cativar a quem ousa terminar um poema ou uma história e seguir para a próxima página sem antes verificar onde nos encontramos.


Xavier Zarco
Coimbra, 20 de Maio de 2008

sábado, 27 de setembro de 2008

[enlaça]

enlaça
as vozes
anteriores a ti
no teu poema

porque
ancestrais
somos nós

sabedores do tempo
herdeiros
e construtores de memória

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

[engana]

engana
o tempo

esgana
o tempo

que a areia
não passe

na garganta
da ampulheta

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

[embutido]

embutido
o ícone

exposto

aguarda
que pelo corpo
irradie
o saber
da terra

a sabedoria
de ignotos
deuses

estranhos
ao mundo

ao conhecimento
dos homens

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

[Em torno das casas, as vozes]

Em torno das casas, as vozes
plenas do cântico das aves
que rodopiam e iluminam
o olhar dos homens. Estes semeiam
águas breves como se o barro
primordial de novo moldassem.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

[em teus braços]

em teus braços
repouso o último verso
de um poema impossível de escrever

é meu filho
que respira a esperança

sol que nasce e ilumina
o olhar

este olhar eterno em mim

enquanto memória em mim
houver

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

[em sonhos conquisto teu rosto]

em sonhos conquisto teu rosto
por alamedas por onde ardem
espelhos quebrados e a luz
é orvalho em pétala de flor
que acaricia o sol que sente
bordar seu corpo de criança

domingo, 21 de setembro de 2008

[em patmos]

em patmos
verão
o fim

infindos
ritos
de morte

ou o nascer
de um novo
rumo

verás
retábulos

embutidos
na árvore
do mundo

verás
o que teu
próprio
olhar

a medo

indagar

sábado, 20 de setembro de 2008

[em minhas mãos nasce a vontade]

em minhas mãos nasce a vontade
de criar
de cinzelar o silêncio
e erguer a memória

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

[em fogo a palavra esvoaça]

em fogo a palavra esvoaça
por sobre a mesa onde o poema
exposto espera o último gesto
de um parto em sonho anunciado

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

[em espiral]

em espiral

ascende
no dorso
da música

és vaso

sangue
iluminado

que comunica
com o cosmos

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

[Em cada palavra esconde-se]

Em cada palavra esconde-se
a voz que a pronuncia

terça-feira, 16 de setembro de 2008

2008-09-13 - Apr. de: “Sentada na Areia”, Joana Moça (Edium Editores, 2008) - Biblioteca Municipal Camilo Castelo Branco, Famalicão

Embora sabendo que me vou repetir, tenho de agradecer, e muito, a vossa presença aqui, nesta tarde de sábado, para assistirem ao lançamento de um livro de poesia. Mais agradeço dado se tratar de um livro especial, especial porque o primeiro da poetisa Joana Moça.

A poesia, tantas vezes tratada como o parente pobre da literatura, bem merece – e, por certo, também ela agradeceria – a vossa presença.

Muito obrigado por este vosso gesto.

Agradeço, também, à autora este inesperado convite. Posso dizer que não vim de propósito de Coimbra até Famalicão, mas vim com extremo agrado. Há de facto alturas em que só se pode dizer sim.

Bom, mas o certo é que sobre a Joana Moça, que hoje faz a sua estreia no mundo dos livros, não no acto da escrita de índole literária, pouco sei. Só hoje tive o privilégio de a conhecer pessoalmente.

O que tenho conhecimento está escrito na sua sinopse biográfica constante neste seu livro.

No entanto, pelo que li, não só no seu livro, mas também no seu blogue, embora se diga que o poeta, neste caso a poetisa, seja um fingidor, traz-me a imagem de alguém sensível e, através dessa sensibilidade, de alguém que procura interpretar o mundo por forma a entregar ao outro essa sua interpretação da maneira mais simples, mais perceptível possível.

Em suma: alguém que pretende comunicar de forma cristalina, sem adiposidades de qualquer sorte.

O livro: “Sentada na areia”, que hoje aqui se apresenta, editado sob chancela da Edium Editores, é o retrato perfeito dessa sua postura perante as mais diversas situações.

Este título: “Sentada na areia”, isto sem que haja necessidade de o abrir, sugere-me, de imediato, duas situações.

A primeira, alguém que está num areal. Nada mais simples. Mais concretamente, numa praia onde a imagino a contemplar o mar. Talvez observe o movimento das ondas. No entanto, pessoalmente, imagino a poetisa, a criadora desta obra, a contemplar a distância, aquela linha onde o mar e o céu se fundem num único corpo. Esta é a primeira sugestão.

A segunda aproxima-se mais da própria essência da poesia, do acto de construir e destruir para possibilitar uma nova construção. Imagino os parques infantis da minha infância onde havia sempre uma caixa de areia. Há uma criança que brinca sentada na areia. Ergue e arrasa e ergue a sua construção. Esta é a segunda sugestão.

Estas duas situações que o título me sugere são acções próprias da poesia. O poeta precisa de observar o mundo, necessita de encontrar pontos de fusão entre o mundo das ideias e o mundo material que, há pouco, representei como o horizonte.

Mas o poeta procura mais. Sabe que é urgente construir, destruir e voltar a construir, tal como a criança, o que ergue como poesia. A sua areia são as palavras. Trá-las para o corpo do poema, não só pelo que estas transmitem no plano racional, mas também pela musicalidade, plano emotivo, que estas em si possuem.

E é isto o que de facto se pode ler em “Sentada na areia”. Aliás, se tivesse necessidade de elaborar uma síntese, escreveria: “Sentada na areia”, uma viagem ao complexo através do simples ou uma viagem ao universal através do particular.

De facto, a escrita de Joana Moça demanda radicalmente o âmago do que a rodeia para posteriormente nos legar não algo como contemplado, mas algo a contemplar. Pretende, pelo menos esta é a minha leitura, através do que sente e pensa e que pela acção transforma em poema, dar-nos, é certo, a sua interpretação da coisa contemplada, mas mais do eu isso, dar-nos a possibilidade da fresta por onde o leitor – o que ousar fazê-lo – poderá, ele próprio, descobrir.

É uma poética que convida a essa descoberta, fá-lo mas do que entregar o dado como adquirido.

Talvez por isso Joana Moça escreva o seguinte, e passo a citar:

“São as ilusões que nos fazem caminhar”, fim de citação.

Através da descoberta particular, transfigurada em poema e em ilusão, entendida aqui não como erro de percepção, mas como sonho ou desejo, a autora estabelece um objectivo: através da escrita sugestiva possibilitar ao leitor o acesso a um espaço de partilha, de partilha de um caminho.

A elaboração do poema, objecto de arte, como tal feito para o usufruto do outro, parte do eu quer seja através de um plano sentimental, sensorial ou racional.

No caso de Joana Moça este eu surge como elaborador de um ponto de partida, não de um ponto intermédio ou final. Preconiza a abertura da tal fresta sobre o mundo por onde o leitor, como há pouco mencionei, pode entrar.

Se o fizer, pode então partir em busca dos caminhos da sua própria ilusão, aquela onde radica a essência do seu próprio caminho. O caminho visto sob a definição de Antonio Machado, aquele que se faz ao caminhar.

Há, portanto, e em forma de resumo, aqui, nesta obra, os cinco movimentos enunciados:

Primeiro: a sugestão do acto de contemplar, de observação – objecto a ser;

Segundo: indícios da recolha das palavras, matéria que enformará o objecto;

Terceiro: o facto em concreto da criação da possibilidade do objecto – o poema para o poeta;

Quarto: a pretensão da destruição do poema pela leitura;

E quinto e último: a possibilidade da criação do objecto em si – o poema para o leitor.

Joana Moça, neste seu “Sentada na areia” abre a possibilidade do caminho, indaga das suas coordenadas, elabora a sua cartografia, mas tudo para que seja ao outro possível o desenho do passo.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

[eis o poema]

eis o poema

ouve

a seiva
corre

nas veias
deste choupo

domingo, 14 de setembro de 2008

[elevas as palavras]

elevas as palavras
que se promovem na tua boca
a tua voz é ventre de sentidos
ágora demandada
pelas aves
em movimento
vai com elas rente
ao tegumento do cósmico
e indaga
a matriz inicial
para que descubra
a magia o ritual
o poema habitado
na conjugação
do verbo sentir

sábado, 13 de setembro de 2008

[eis o poeta]

eis o poeta

que ganha
a jorna

som
a sílaba

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

[eis]

eis
o mar

que se aconchega

na ternura
da areia

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

[e vejo riachos]

e vejo riachos
riachos que crescem
e são rios
rios que correm como loucos
em desejos suicidas
para do sal sentirem
o sabor do fim

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

[é urgente descobrir]

é urgente descobrir
uma outra pedra
de champollion

e decifrar
o dédalo da memória

como renda de bilros
que de gesto em gesto
se constrói

terça-feira, 9 de setembro de 2008

[É tempo de esboçar]

É tempo de esboçar
em silêncio
o regresso.

Tecer no mar a espuma
ao rigor da proa.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

[É no silêncio]

É no silêncio
das palavras
e das imagens
que a memória
se constrói

Esta é súbita
ave
em redor
do momento

Cada instante
se avalia
em permanência

Sangue
sulcando
a pedra

limando
o poente
até à sua perfeição

domingo, 7 de setembro de 2008

[É nas mãos que nasce o gesto]

É nas mãos que nasce o gesto.
Este abre-se.
É pleno de desejo em acto de criar.

sábado, 6 de setembro de 2008

[É amplo o olhar que indaga a luz.]

É amplo o olhar que indaga a luz.
Em cada instante se promovem
os mágicos feitos de esboços no
ensejo de serem rosto,
de terem nome.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

[do peso]

do peso
da pálpebra
à leveza
do sonho

dista
somente
o ensejo
do voo

repleto
olhar
por sobre
o mundo

rente
à epiderme
do universo

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

[do mar azul a imensa]

do mar azul a imensa
imersa a voz
onde o poema em pétala
de espuma
branda e branca
se desfaz

e um barco
na origem do desejo
zarpa e rasga e esventra
o hímen das ondas

e as mãos do artífice
que a madeira cinge
ao côncavo do verso
onde brota a argila
a intensa argamassa
fecunda e fértil

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

[do cigarro]

do cigarro
à memória
não longa
é a distância

como a memória
o cigarro
se reduz
à cinza

o vento
espalha-a

a memória
perde-se

terça-feira, 2 de setembro de 2008

[do centro]

do centro
do cosmos

o movimento
estelar

como dança
ritual

da criação

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

[Diro, é o sentir do vazio]

Diro, é o sentir do vazio
correr em torno do ser.
O saber de um rosto ou nome que em
narcísico lago se não
revele. É ter do poente a
ignota mão por onde não
pulula o acto de criar.

domingo, 31 de agosto de 2008

[digo diro o destino]

digo diro o destino
porque conheço as amarras
que aqui
me prendem, cordão solar
que me impede
o voo
rumo ao sonho

sábado, 30 de agosto de 2008

[deste sol]

deste sol

este sal

resiste
e redivive

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

[desperto]

desperto

o ritual

o sol poente
bebendo
do sal

rente
ao teu olhar

desperto

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

[descreve]

descreve
a queda

a folha
voando

no dorso
do vento

nas águas
do olhar

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

[Desconheço outra canção]

Desconheço outra canção
Para além do corpo alado
Que alto voa de emoção
Nesta voz que canta o fado

De xaile ou capa trajando
Há-de mais alto cantar
Porque há um verso voando
Rente à flor do verbo amar

Não há poema que o seja
Se na voz não for saudade
Resta a palavra que enseja
Ser canção de liberdade

terça-feira, 26 de agosto de 2008

[desconheço o sentido das palavras]

desconheço o sentido das palavras
que em torno do silêncio navegam
pressinto a poesia que as demanda
nas cristalinas veias da memória
e sinto que do mar imenso um verso
como náufrago encalha em minhas mãos
e num parto de som e cor pulula
no tegumento ardente de um papiro
que no tempo em silêncio repousa

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

[desconheço]

desconheço
por que rituais se cumpre
o mistério nocturno
o que sinto
é uma estranha música
que nasce dentro do breu
e que desce
rumo ao ventre da terra
incendiando as formas
todas as formas
com que embebedo os sentidos

domingo, 24 de agosto de 2008

[descera]

descera
escarpas

atravessara
mundos infindos

caminhos
ermos

desconhecidos
por cartógrafos

novas orografias

para aqui chegar
e beber

do fogo
a vertigem

uma ancestral
dança

ritual
de tempos

sem memória

sábado, 23 de agosto de 2008

[depura]

depura
o olhar

sensível

nas aves
que rumam
à primavera

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

[dentro do voo do milhafre]

dentro do voo do milhafre
a poesia nasce e escorre
no tegumento do horizonte

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

[deixo-te como habitante]

deixo-te como habitante
desta secreta morada
para que indagues
o rumor dos sentidos
oculto nas palavras

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

[Deitado, o velho sobre a laje fria]

Deitado, o velho sobre a laje fria,
recolhido do vento pelos pi-
lares da igreja, agora fechada, ia
nas asas desse sonho que há em si.

Só lhe restava a espera, o sol nascente,
o gesto caridoso da beata
que uma moeda oferta ao indigente
que a beata fuma porque mata.

Mas o tempo mui lento passa e sente
como a noite é semente umbilical
em que o retorno ao mundo não se adia.

Seu corpo agora é peso de alma ausente
sob a página aberta de um jornal
onde seu nome a negro se escrevia.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

[deito a cabeça na almofada]

deito o cansaço na almofada
e aconchego os lençóis
os cobertores

entoo uma canção
para que durma em sossego

para que embarque
num sonho
e possa voar

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

[deixo]

deixo
pousar
a memória
por sobre
o pó
dos tempos

cada instante
tem o encanto
da vida

o pulsar
mágico
do sangue

veias
absortas
à navegação
do sonho

domingo, 17 de agosto de 2008

[decepada]

decepada
a árvore

palavra
desprovida
de uma voz
que a eleve
a canção

a mágica
fórmula

de signo
e significado

sábado, 16 de agosto de 2008

[De sol a sol]

De sol a sol,
ao rigor da jorna,
o lavrador de silêncio
sulca a sílaba
ao ritmo dos solstícios.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

[de novo parte]

de novo parte
parte em busca de um retábulo
que seja teu
de mais ninguém

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

[de novo]

de novo

observa
o casulo

o movimento
larvar

o dealbar
da beleza

rente
ao tegumento

de um voo
próximo

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

[De manso, sopra o vento. Ruma a sul]

De manso, sopra o vento. Ruma a sul
com as aves. Vai rente às arestas
de um sonho em breves asas esboçado.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

[da boca]

da boca
ao grito

o silêncio

ou a fuga
que se esboça

numa branca
imensa

tela

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

[cruza]

cruza
o rio

rumo
à cidade
do saber

se teu desejo
for vencer

os fluviais
seres

que teu medo
elabora

em concretos
esboços

domingo, 10 de agosto de 2008

[cria]

cria
o êmbolo

a magia
de buscar
raízes

de plantar
a vida

sábado, 9 de agosto de 2008

[Cresce em torno da memória]

Cresce em torno da memória
um frémito de ausência.
Liquefeito, o poema corre
no corpo da ribeira
até ser freima.
Caudal intenso de sentidos.

Em redor, só o silêncio.
Frondosa árvore
que abraça o vento:

o paciente cinzel do tempo
por onde o verso brota.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

[crepita]

crepita
o sonho

longamente

neste forno

deliciosamente
docemente

mas é tempo
de o varrer

e cozer
a broa
da vida

sorrir
para a estrada

beber pó

continuar

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

[Consomes a memória, como um]

Consomes a memória, como um
cigarro esquecido no canto
da boca, enquanto o olhar perdura
pendurado na janela
do horizonte. E, em cada imagem,
recolhes o poema. A safra de
apartar da amálgama
do tempo a palavra, o ritmo,
a música com que acordas
o sol
e despertas o caminho,
secreto mapa,
orografia no tegumento
das mãos em dédalo desenhada.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

[consome]

consome
o sonho
no instante
da partida

regresso
incólume
fumo
ascendente

memória
de uma cigarrilha
esquecida
presa
entre os dedos

terça-feira, 5 de agosto de 2008

[conhecia o segredo supremo]

conhecia o segredo supremo
do universo
o sorriso das estrelas
e chamou-lhe música

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

[Como o rio que nasce, sonho o sal]

Como o rio que nasce, sonho o sal
O poema final por escrever
Na face desta pedra onde meu ser
Procura um corpo, uma alma ou um sinal.

Sei somente do instante deste vale
Que espera o sulco, a fenda a percorrer
Por esta água em fúria. Deter
Entre margens o corpo, o sonho, o sal.

Não sei por que adjectivo definir
Este rumor amargo, esta memória
Em que me deixo aqui dentro da estória

Que alguém, um dia, algures há-de vir
A escrever. Sei somente que sou rio,
Palavra que procura o sal que adio.

domingo, 3 de agosto de 2008

[como o almuadem]

como o almuadem
no topo
do minarete

proclamo
a hora

a hora
em que a poesia

por teu olhar
alada

indaga
o sol

e nele
bebe o ritmo
a cadência

a música
das palavras
ocultas

no ventre
de cada verso

sábado, 2 de agosto de 2008

[como em secreto ritual]

como em secreto ritual
as vestes iniciáticas
trajo

espero a revelação
dos símbolos

o aforismo supremo
que em silêncio na alma se guarda
como relíquia sagrada
do templo do homem

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

[Aguarda que em silêncio a palavra]

Aguarda que em silêncio a palavra
se erga e ganhe o seu corpo de sentido.
Ente alado nas vozes desprendido
num gesto libertário em que se abra

para a boca do mundo sendo lavra
secreta do poema que vivido
fora e nunca cantado. Não ferido
pelas asas do tempo como escrava

de corpo aberto ao dono, com o olhar
disperso pelo céu numa viagem
sem dor, nem sensação, em liberdade.

Nado, o poema é estrela, astro a errar
no ventre do silêncio. A voragem
de correr para a morte e ser verdade.

quinta-feira, 31 de julho de 2008

[Agora que incide na face]

Agora que incide na face
da flor o desperto olhar e
no íntimo se esculpem
as formas, as cores, o próprio
desejo de se fundirem
as almas
e de novo ser uno,
universal.

Agora que as mãos se enlaçam
e indagam o supremo gesto da
criação do signo,
do significado.

Agora é tempo de edificar
o poema,
de corromper o silêncio.

quarta-feira, 30 de julho de 2008

[com uma brandura]

com uma brandura
milenar

a areia acolhe
o mar
como se fosse fecundada
de espuma breve

de sol e sal

terça-feira, 29 de julho de 2008

[agora]

agora
que sabes

o lugar dos sentidos
se descobre

perante teu olhar
se desnuda

um convite se promove
para que ascendas
e murmures

sephira tiphereth

segunda-feira, 28 de julho de 2008

[cada sílaba]

cada sílaba
traz a ardência
de antigas
formas

esculturas
legadas
a cada olhar

como se
de uma árvore
mil ramos
se derramassem
em sentidos
múltiplos

domingo, 27 de julho de 2008

[ágil]

ágil

a palavra
esvoaça

é música

verso
nado

no ventre
do sonho

sábado, 26 de julho de 2008

[Adormecera na branda e]

Adormecera na branda e
branca espuma do mar

e no dorso
das ondas

deixou o sonho
embarcar

Nesse instante
tão curto
como derradeiro

saboreou
a maçã do saber
e soube o preço da liberdade

Perdera deus
ganhara vida

sexta-feira, 25 de julho de 2008

[Cada poema é o graal]

Cada poema é o graal
reencontrado
eterno manjar
redescoberto

quinta-feira, 24 de julho de 2008

[As palavras, escassas, sob a]

As palavras, escassas, sob a
erosão do poema exposta à
germinação do olhar.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

[Aceso o cigarro, esqueço]

Aceso o cigarro, esqueço
o tempo que passa. Procuro
a espera de alguém. Ninguém vem
na rua descendo ao encontro
da minha janela, onde ausente
estou de meu ausente olhar.

terça-feira, 22 de julho de 2008

[Acaso o ocaso é breve como]

Acaso o ocaso é breve como
as mãos que a candura criam
ao encetar o movimento.

O movimento que ascende
rumo ao desejo. Rumo ao centro
da própria palavra original.

segunda-feira, 21 de julho de 2008

[arte]

arte

fazer
do visto
mundo

em meu olhar

o teu olhar
do mundo

domingo, 20 de julho de 2008

[acaso]

acaso
o sol poente

é onda
batendo

no silêncio

da noite

sábado, 19 de julho de 2008

[arde]

arde
nas veias
a seiva

célere
poema

instante
alado

tronco
de onde braços
se estendem

para acariciar

o sonho
de ícaro

sexta-feira, 18 de julho de 2008

[apreendi]

apreendi
a arte
do envoltório

mover
o centro

e ser
acto livre

nascer
e morrer

num só instante

quinta-feira, 17 de julho de 2008

[Ao corpo, recolhe em silêncio]

Ao corpo, recolhe em silêncio.
O peso da matéria,
de novo, sente
porque uma voz te chama
para na máscara diurna
te recolheres
para inventares um sorriso.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

[a tecedeira tece a vida]

a tecedeira tece a vida
no gesto paciente que a gravura
fixa ponto por ponto no tear
e ao olhar se desvenda
como cortina que se abre
lentamente para a visita do sol

terça-feira, 15 de julho de 2008

[A pedra aguarda a mão do tempo]

A pedra aguarda a mão do tempo
o vento
o cinzel paciente
trabalhando
as arestas do verbo
a poesia

segunda-feira, 14 de julho de 2008

[A orla de teu corpo]

A orla de teu corpo
fim do meu deserto

domingo, 13 de julho de 2008

[A noite estava fria. Trazia um]

A noite estava fria. Trazia um
hálito de dezembro em pleno agosto.
Olhava a seca flor por entre as páginas
do livro e meditava: como é breve
o silêncio quando se abre a vida
como uma persiana para ver
o mundo. O mundo chora como a flor.
Dão-lhe a imagem da morte pela vida.

sábado, 12 de julho de 2008

[anseio]

anseio
sorver
das alturas

o saber
ignoto

o cântico
das estrelas

a magia
de rodopiar
em torno de mim

sexta-feira, 11 de julho de 2008

[Ancestral]

Ancestral,
o poema surge íntegro.
Abraça o silêncio
que habita na memória.
Na construção de um verbo nado eterno.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

[algures]

algures

a mão
trabalha
no ofício
do gesto

para que as palavras
se recolham

uma
a uma

na candura
do verso

quarta-feira, 9 de julho de 2008

[a memória]

a memória
extingue-se

no dizer
breve

da morte

terça-feira, 8 de julho de 2008

[A mão agarra na pedra e]

A mão agarra na pedra e,
sentindo o seu corpo, demanda
a forma oculta como um
ventre fecundo de mulher.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

[a mão]

a mão
esboça

o gesto

iluminando
no ventre

a palavra

domingo, 6 de julho de 2008

[A luz. A magia da luz]

A luz. A magia da luz
aflorava no olhar. Por uma fenda
antevia a cor, a cor
de um desejo imenso
que fluía
entre dedos
na ramagem do tempo.

Acordava abrindo uma janela
para dependurar
um quadro

o derradeiro sonho
de uma viagem
ao interior da alma.

sábado, 5 de julho de 2008

A José Craveirinha

José traz a palavra qual semente
no ventre de seus olhos. Era no
branco solo da página que o po-
ema brotava. Verso a verso. Pétala
com o sol encantada, indagava a
luz. José admirava o subtil fio
de ouro que por magia se erguia em
cada verso. Por ele, subia. Hábil,
trepava na candura dos acordes
emanados. José aprendeu essa
música, a flor secreta. E quando o seu
olhar fechou, em suas mãos guardava
o aroma desta terra onde nascera
e as palavras da safra que colhera
e que nos dera em cântico de sonho.
De todas, as mais belas, essas tinha-as,
preciosas, bem junto ao coração:
Maria, Moçambique, Liberdade.

sexta-feira, 4 de julho de 2008

a Joaquín Rodrigo

no sol da andaluzia
talhaste o bojo de uma guitarra
e dedilhaste a vida
a magia da cor
da luz de aranjuez
sentindo-a como tua
somente tua

e no trasto do sonho
acordaste o acorde
o início da melodia
que célere trepa
como cometa
o tegumento do cosmos

ao sol da andaluzia
adormeceste
e como grega pomba voaste
rente à abóbada celeste

quinta-feira, 3 de julho de 2008

[À guisa de posfácio, pousei]

À guisa de posfácio, pousei
Um derradeiro verso sobre a fria
Laje que cobre o túmulo onde um dia
Meu corpo inerte, inútil deixarei.

Pouco me resta, é certo. Do que sei,
Sendo pouco, farei uma enxertia
Em outra árvore. Quero poesia
Legar pelos recantos onde andei.

Semear poesia, é construir
Memória, sentido, sentimento.
É certeza da vida a refulgir.

Quando morrer, que morra. O que perdi,
Foi pouco mais que o instante, um só momento,
Porque, de resto, soube que vivi.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

[A cama, lençóis, fronhas, almofadas]

A cama, lençóis, fronhas, almofadas,
edredons, cobertores e as colchas.
Para haver poesia bastaria
o meu corpo, o teu corpo e nada mais.

terça-feira, 1 de julho de 2008

[a argila]

a argila
como sémen

aguardando
o gesto
de oleiro

que a erga
em carne
e sangue

e movimento

sábado, 14 de junho de 2008

2008-06-14 – Junta de Freguesia de Santa Clara – Apresentação: “O livro do regresso” e “Nove ciclos para um poema”

Em primeiro, deixem-me dizer que sabe bem estar em casa. Santa Clara é a minha terra, da qual muito me orgulho de ser o autor da letra do seu Hino. É, no plano afectivo, o prémio que mais me diz. Santa Clara é o local que os meus pais escolheram para viver, a terra onde nasci, embora o bilhete de identidade diga o contrário e onde espero que a minha esposa e os meus filhos se sintam bem.

Posto isto, agradeço muito a vossa presença, assim como a amabilidade da Junta de Freguesia de Santa Clara por nos ter aberto as portas para aqui ser feito este evento. Também, porque é justo referi-lo, por ter mantido o apoio, mesmo talvez um ano depois, à edição desta minha obra: “O livro do regresso”.

Quase todos vós me conhecem como o Pedro. Xavier Zarco soa estranho. Pois bem, este pseudónimo com o qual assino todos os meus textos de cariz literário desde o dia vinte e três de dezembro de mil novecentos e noventa e três, surge não por capricho ou outro qualquer devaneio, sequer por não gostar do meu próprio nome, mas porque um dia alguém me apresentou um livro. Lia-se na capa, Pedro Baptista, como o autor desse livro. Aquele Pedro, mesmo com um P no Baptista não era este. E não é, embora essa dúvida ainda hoje resista.

Para evitar essa confusão, surge então o nome Xavier Zarco, o qual já me acompanha, como antes disse, há um bom par de anos e, espero, porque ainda me considero novo, por mais uns bons e muitos anos, de preferência a viver aqui, em Santa Clara, na minha rua, onde, reparei há escassos dias, ainda há quem me trate por menino, isto apesar da barba já dar sinais de brancura, o que é, pelo menos para mim, bastante gratificante.

Fazendo um rápido balanço, quase estatístico, são perto de vinte anos de actividade literária visível, que se assinala no próximo dia seis de fevereiro, vinte títulos, sendo seis destes sob o formato convencional de livro e um total de doze distinções, isto para não mencionar participações em antologias em Portugal, Brasil, Espanha ou Uruguai, revistas, jornais e nos mais variados sítios da internet. Apesar de tudo isto, há que continuar pelo que fica a minha firme convicção de que mais virão, não só na Poesia, mas em outros géneros literários. Esta produção só foi e é possível porque as circunstâncias familiares o permitiram e o permitem. Como sabem, não sou profissional da escrita. Daí o meu agradecimento aos meus pais pela forma como souberam criar o gosto pela leitura. E à minha esposa e aos meus filhos pela paciência que, não raras vezes, demonstram ao aturar-me. Xavier Zarco, quer se goste ou não, é uma espécie de marca que veio para ficar.

Relativamente aos livros, quem escreve pouco pode dizer, mas como estou em casa, sobre “O livro do regresso” faço algumas confissões. Este é uma espécie de narrativa, sob a forma de Poesia, sobre alguém que regressa. Encerra, embora de forma simbólica, um facto concreto da minha vida. O meu regresso a Santa Clara. Esta aldeia imaginária que vai surgindo no livro é o fruto, embora estilizado, da imagem que em mim guardo das Almas de Freire. Por certo, recordar-se-ão do Lagar e dos rebanhos que por aí andavam; da Tulha e da sua rica vegetação; do Largo das Almas onde o trólei dava a volta, local da partida e da chegada; e havia muitos outros exemplos que poderia mencionar.

A imagem que projecto neste livro poderá porventura ser uma imagem de alguma tristeza, mas esta é sobretudo a imagem de alguém que não viveu uma determinado período de tempo num determinado lugar. E o que se procura quando se regressa são as referências, as tais ruínas que em nós existem e que são os fragmentos que a nossa memória possui.

Depois, há o pormenor dos nossos próprios conceitos. Para mim, no meu conceito de evolução, as cidades não evoluem pela mesura do edificado, mas pela qualidade de vida e é por esta razão que transformei este espaço concreto no tal cenário mais bucólico.

Sobre o “Nove ciclos para um poema”, apresentado na passada terça-feira em Bragança, creio que bastará referir que é uma homenagem ao mundo da lusofonia. Nove citações de nove poetas de cada um dos países lusófonos: Angola, Brasil, Cabo Verde, Galiza, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor; como ponto de partida para a construção de ciclos autónomos, mas unificados pela língua. Simbolicamente, a Língua é a própria essência deste livro. Aliás, creio ser esta o mais válido garante, o principal pilar da soberania de um povo.

Para concluir, gostaria de agradecer à Edium Editores pela aposta que vem fazendo na Poesia; agradecer a todos vós pela vossa presença, porque pode não haver Poesia sem poetas, mas não há de certeza Poesia sem leitores; e novamente, senhor Presidente, o meu muito obrigado por nos ter recebido aqui e pelo apoio concedido à edição d’ “O livro do regresso”, agradecimento que é extensivo à Região de Turismo Planície Dourada.

Muito obrigado a todos.

Uma nota, antes deste discurso, dadas as circunstâncias, referi três tópicos, a saber:

1. Agradeci a amabilidade do Presidente da Junta de Freguesia de Santa Clara por me ter ofertado o brasão da Junta, gesto que muito me orgulha;

2. A ausência de "camaradas" das Listas e de outras minhas andarilhanças das letras, com ressalva pelas excepções, ou seja: a presença de Carlos Ferreira (Lista Escritas) e do poeta Jorge Melícias. Não referi o poeta João Rasteiro, que por circunstâncias pessoais chegou após o fim da sessão, mas fica aqui o meu agradecimento;

3. Da alusão ao Prémio Nobel da Literatura no discurso do Presidente da Junta de Freguesia de Santa Clara. Naturalmente que tal não está nos meus horizonte, embora me arrisque porque escrevo, como todos os que escrevem.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

2008-06-10 – Centro Cultural de Bragança – Apresentação de “Nove ciclos para um poema” (Edium Editores, 2008)

É bom regressar a Bragança. Digo-o, não por cortesia, mas porque é de facto bom voltar aqui.

Em outubro, aquando da entrega do Prémio Literário da Lusofonia, referi a minha satisfação por, num certame multidisciplinar, a Poesia ter sobressaído. Nesse mesmo dia, esta autarquia mostrou todo o empenho e disponibilidade para auxiliar em tornar este livro uma realidade. Depois, tive conhecimento de que o novo regulamento deste certame literário contemplava o género teatral. Se outros não houvessem, estes são três grandes argumentos para me sentir bem aqui.

Se a Poesia é, tal como disse na altura, a arte que melhor exprime a alma de um povo, o teatro, pela escassa oferta existente no mercado, bem merece por parte das instituições uma particular atenção.

Quem gosta destas coisas da literatura, deve saudar a coragem da organização deste concurso pela não escolha de uma via mais fácil, mediaticamente mais apelativa.

Bem-hajam por isso.

Sobre este novo livro: “Nove ciclos para um poema”, pouco ou nada pode ou deve dizer quem o escreveu. No fundo, só vos posso trazer os motivos de o ter feito.

A partir do instante em que este se transforma em livro, objecto partilhável, como que deixa de ser do autor e passa a ser de quem o lê, aberto à crítica quer seja esta positiva ou negativa. Ambas são bem-vindas. Como já por diversas vezes disse só não aprecio a indiferença. Assim só posso referir os motivos da sua criação quer pelo conteúdo quer pela forma que assume.

“Nove ciclos para um poema” pretende ser uma homenagem ao mundo lusófono, partindo de nove citações de nove autores dos nove pontos do globo onde a lusofonia é a expressão maior: Angola, Brasil, Cabo Verde, Galiza, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor.

Uma digressão de recolha dessas citações para, posteriormente, daí fazer nascer estes nove ciclos. É somente isto, o prazer de erguer Poesia no tal branco da página.

Espero que este livro, que agora surge, tenha o melhor acolhimento possível, que seja capaz de vos trazer algo, menos a tal indiferença.

domingo, 18 de maio de 2008

2008.05.17 - Auditório da Biblioteca Municipal do Barreiro - Apresentação de "Rio de sal", Luís Ferreira (Edium Editores, 2008)

Antes do mais, agradeço a vossa presença nesta bela tarde de sábado. Como por diversas vezes já afirmei, a Poesia de nada vale sem público. São os leitores a essência do ofício poético.

Obrigado por isso.

Numa altura em que os caminhos da Poesia, na sua generalidade, vão desembocar a um certo hermetismo, é reconfortante descobrir vozes que navegam por outras vias.

Naturalmente que me refiro, especialmente, ao poeta de quem hoje se apresenta este título: “Rio de sal”, o Luís Ferreira.

Do Luís Ferreira, como pessoa, o que sei, surge basicamente do que li e de um curto encontro em Viana do Alentejo, onde nos brindou: a mim e ao poeta José-Augusto de Carvalho, com a sua presença aquando do lançamento conjunto do meu “O livro do regresso” e do “Da humana condição”, desse excelente poeta alentejano.

Mas sei um pouco mais, para além do que transparece do que escreve e do pouco que falámos na altura. Tem 38 anos, feitos recentemente, sendo natural desta cidade que hoje nos acolhe, o Barreiro.

A sua obra já foi objecto de diversas distinções. E publicou o seu primeiro livro no ano passado, “Mar de sonhos”, título homónimo do seu blogue.

Ora bem, este seu segundo título: “Rio de sal”, pelo que em suas águas transporta, faz-nos, não edificar uma ponte, mas deixarmo-nos levar na sua corrente, na sua serena corrente.

É um livro que pretende, não uma contemplação exterior, sendo, portanto, a tal ponte desnecessária, mas uma observação de dentro dos próprios mecanismos do poema.

Há que sentir. É por isso que considero “Rio de sal” um retrato do homem e do poeta, da sensibilidade que o homem possui e que o poeta transporta para a condição de poema.

Passo a explicar. Lê-lo foi revisitar um dos pontos altos de qualquer época da História da Poesia: a temática amorosa. Embora não seja da opinião do poeta francês Mallarmé que refere que a poesia se faz com palavras, e não com ideias, devo reconhecer que, tendo como antípoda da ideia ou razão o sentimento, as palavras adquirem uma outra conotação.

A Poesia de Luís Ferreira vai por aí, desenvolve-se nesse caminho da palavra possuidora de musicalidade para o despertar dos sentidos. Não quero com isto dizer que a ideia, ou sua visão pessoal do mundo, esteja fora da sua Poesia, muito pelo contrário.

Mas Luís Ferreira pretende sobretudo, naturalmente que isto é a minha leitura, chegar a uma outra foz.

Este rio pretende o mar, tal como qualquer outro rio, mas o seu mar é aquilo a que nós nos habituámos a designar por coração. Ou seja: a nossa forma sensível de encararmos e compreendermos o mundo.

Neste “Rio de sal” encontro o rosto do filho pródigo que regressa à casa da Poesia. Mas que desenha esse seu caminho, não de mãos vazias, mas trazendo consigo o tema, reforço aqui a utilização do artigo definido, porque é o tema da Poesia: o amor.

Um pequeno parêntesis: o amor e a morte são os temas de eleição da Poesia, opinião que não é só a minha, mas que é partilhado por muitos. Naturalmente, vale o que vale.

Quando há pouco referi a questão temporal, desta temática ser transversal à História da Poesia, fi-lo com natural convicção.

Proponho-vos, portanto, uma pequena viagem pelo tempo, dando voz aos poetas, e onde os encontro, naturalmente, neste “Rio de sal”, de Luís Ferreira.

Em jeito de epígrafe, deixo-vos uma citação de um poeta, como tantos outros, esquecido por este país pretensamente de poetas, refiro-me a Gabriel Pereira de Castro, poeta do século XVI, e que é a seguinte:

Como é no mundo Amor quinto elemento
Que tem dos gostos uma e outra chave


Antes, o que motivou esta procura, e esta necessidade de viajar através do tempo, seguindo, como os nossos antigos marinheiros, a linha de costa propiciada pela Poesia de Luís Ferreira.

Estes foram os dois versos causadores desta demanda, incluídos no poema: “Uma morte anunciada”. Passo a citar:

Geração após geração...
Tudo é uno e o uno é universo.

Posto isto, iniciemos então esta viagem escutando João Airas de Santiago, da segunda metade do século XIII:

Dos que a guardam sei eu já
que lhis non pod’ ome alá ir,
mais direi-vos, por non mentir:
pero mui guardad’ está,
quantos dias no mundo son,
alá vai o meu coraçon.

Agora, Luís Ferreira, com excertos retirados do poema: “Meu amor, preciso de ti esta noite...”:

Sinto-me só no meu mundo
(...)
peço ao vento que transporte o meu desejo
(...)
Quero que a tua respiração rompa este silêncio,
E as palavras secretas alegrem o meu coração
(...)
como preciso do teu amor,
Para ser feliz...
Como preciso de ti esta noite...

Tal como o poeta galaico-português, Luís Ferreira sabe moldar esta vertente, a do amor distante e a necessidade de o ter ao seu lado: ou seja, uma esperança que não se esvai, por muito difícil que seja o concretizar desse desejo.

Mas esta herança não advém só da Idade Média, ela surge, embora de uma forma mais directa, com um poeta quinhentista, o nosso poeta maior, Luís Vaz de Camões, ao introduzir Luís Ferreira um dos mais conhecidos versos camonianos: “Amor é fogo que arde sem se ver”, no seu poema: “Contos de fadas”.

Aliás, a ideia do amor como fogo, sobretudo como visão de purificação, surge amiúde neste volume.

Prosseguindo a nossa viagem, agora Bocage, poeta oitocentista, escutemos:

Tu és meu coração, tu és meu nume;
Não vive para mim do mundo o resto;
A morte, a vida, os Céus, meu fado atesto,
Meu fado, que em teus olhos se resume.


Luís Ferreira apresenta-nos o amor como algo essencial para a existência humana, talvez resuma desta forma essa ideia no poema: “A noite é nossa, meu amor”:

Num compasso intemporal, cíclico e constante,
Obra majestosa do grande Maestro,
Que acontece desde o princípio dos tempos.

Ou seja, esta obra majestosa, o amor, assumindo a tal condição de quinto elemento, porque criada pelo Maestro, é algo que se repete, mas sobretudo se reinventa através do tempo.

Sendo o poeta homem do seu tempo, mas que concebe, ou deveria conceber, a sua obra como intemporal, é nele que reside a obrigação de decifrar essa matéria, torná-la visível aos olhos do outro, do seu contemporâneo e do seu vindouro.

Para concluir esta pequena amostragem da temática amorosa na Poesia de Língua Portuguesa, e de como Luís Ferreira trabalha a essência dessa matéria da nossa memória cultural e a incorpora, transformada na sua própria oficina poética, com o seu próprio registro, um último exemplo: Vinicius de Moraes, poeta brasileiro do século XX:

(...) de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de amar de amar mais do que pude.

A perenidade do amor que é aqui mencionada, encontro-a em diversos instantes de “Rio de sal”, como exemplo, no poema: “Eu e tu somos um”, onde a dado passo lê-se:

O cedo fica tarde, e o tempo pára...
O mundo não gira, nada importa,
(...)
Ficamos perdidos naquele eterno momento

Com estes pequenos exemplos pretendi situar o livro: “Rio de sal”, e, necessariamente, o seu autor, numa espécie de árvore genealógica. Uma das mais frondosas árvores, não só da Poesia de Língua Portuguesa, mas de toda a Poesia.

E o amor como base temática é, sem dúvida, de importância maior na Poesia, não só, pelos diversos nomes que mencionei, se poderia chegar a essa conclusão, mas sobretudo porque vivemos tempos de um certo alheamento.

E a Poesia tem por obrigação não ser uma linguagem virada para o próprio umbigo, mas vocacionada para o acordar dos homens. Sobretudo, embora não esquecendo o passado, deve estar virada para o futuro.

Assim, como diz Luís Ferreira no poema: “Mundos de silêncio e de escuridão”, e com esta citação concluo:

Como é belo o mundo, o canto de um pássaro...
A melodia do sorriso de uma criança feliz.

Obrigado ao Luís Ferreira pelo voto de confiança, à Edium por mais esta aposta e a todos vós, de novo, o meu muito obrigado.

Que este “Rio de sal” vos traga, tal como me ocorreu, instantes de boa Poesia.