terça-feira, 9 de dezembro de 2008

2008-12-06 – Auditório do Campo Grande, Lisboa - Apresentação de “Arquitectura de um fragmento”, de Betty Branco Martins (Edium Editores, 2008)

Antes de mais, embora sabendo que me vou novamente repetir, mas há repetições que nunca são em demasia, agradeço a vossa presença neste sábado de inverno, sábado de um fim de semana prolongado, ainda por cima com o natal já ao virar da esquina.

Esta vossa opção é para quem escreve algo que significa muito. Quem escreve dá-se em cada caractere, mas só se pode dar quando há quem receba. Daí o meu muito obrigado.

Ora bem. Quando abri o ficheiro deste “Arquitectura de um fragmento”, antes de tudo, o que pensei foi: “coitado do paginador, vai ver-se grego para o compor”.

No entanto, isso é um problema que ele teria de resolver. Não era um problema meu. Como tinha e continuo a ter confiança na decisão dos meus pares que constituem o que nós chamamos de painel de autores Edium, que analisam e emitem o seu parecer sobre as obras que esta edita, atrevi-me a ler, isto antes de comunicar à autora a decisão tomada.

Devo-vos dizer aquela frase feita: primeiro estranha-se, depois entranha-se. Este livro de Betty Branco Martins é, na minha opinião, uma das mais interessantes obras de poesia que a Edium editou no decurso deste ano de dois mil e oito.

Naturalmente que esta minha opinião é exactamente isso: é minha. Mas sendo minha teoricamente nada teria a ver com o impacto inicial causado pela componente visual com que a poetisa espraia o seu texto pelo tradicional branco da página, antes seria o reflexo do conteúdo com que nos incita à leitura e, sobretudo, à reflexão.

Mas não é bem o caso. Esta forma de construir o seu registo, este corpo desenhado para cada poema, dá-nos uma dimensão diversa, uma espécie de guia, de mapa, talvez um moderno g.p.s. para uma nova forma de respiração do verso.

A sua mensagem alia-se portanto a uma cadência interna, não por uma opção silábica, mas por uma estrutura gráfica que leva o leitor a descobrir um ritmo melódico deveras curioso.

Mas que arquitectura e que fragmento, sobretudo este último, dado ser indeterminado. É um fragmento, não o fragmento.

Por definição, arquitectura é a arte de levantar construções de toda a espécie. Por seu turno, fragmento é cada uma – novamente o indeterminado – é cada uma das partes em que se separou um objecto que rompeu ou partiu.

Mas fragmento é parte de um todo, melhor: é a memória desse todo. A prova inequívoca da passada existência de um todo.

Talvez por isso a poetisa procure para a elaboração desta arquitectura de um fragmento um registo intertextual. Dou-vos dois exemplos presentes nos poemas sugestivamente intitulados “O que querem os deuses” e “O ____ Deus _______ das pequenas coisas”.

No primeiro, Betty Branco Martins escreve:

"tens uma faca nos dentes"

No segundo, é o próprio título: “O ____ Deus _______ das pequenas coisas”.

No primeiro exemplo, sinto a alusão a António José Forte que em mil novecentos e oitenta e três publica um livro sob o título: “uma faca entre os dentes” e, no segundo, a presença de Arundhati Roy que no ano de mil novecentos e noventa e sete recebe o Booker Prize exactamente com uma obra que, na sua versão portuguesa, se intitula “o deus das pequenas coisas”.

Com isto, naturalmente segundo a minha leitura, pretende Betty Branco Martins dar-nos a sugestão de quão preciosa é a nossa memória, desta feita aquela que se ergue através da cultura.

Mas a poetisa vai mais longe, não se resume à cultura nada na literatura, antes viaja para o desvelar deste fragmento por outras artes:

Pela música, por exemplo, leia-se no poema “Palhaço” a referência a:

“[Quasi una fantasía]_Beethoven

ou pela pintura, como se pode ler no poema: “Instantes __________ d’alma”:

“_____________________________________________________ ouvia
flores __________ primavera. no nascimento de Vénus feito por Botticelli


São de facto referências, marcos geodésicos para o implementar de todo o projecto de arquitectura. Betty Branco Martins desafia-nos, já dentro do próprio corpo poético, à recolha de cada um destes fragmentos para o decifrar do fragmento inicial.

Mas a poetisa não resume a sua construção futura à memória, isto porque, tal como escreve no poema “[IN]sentidos___na sede”,

“_____o caminho para o poço
não significa
o fim da nossa sede


Há portanto que desbravar os próprios mistérios da arte, neste caso, da escrita. Os artefactos, as regras com que se tornaram possíveis não só o recuperar do tempo, mas o edificar do tempo presente e futuro.

A escrita, a arte, torna-se tema. Leia-se, como exemplo, no poema: “Instantes __________ d’alma”, o seguinte:

numa contemplação do artista __ contínua da natureza __ pois é impossível para ele reproduzir com a mão a partir do natural ___ se não forjou primeiro na imaginação ___ e para fazê-lo precisa estar muito atento ___ pois os movimentos da alma só se manifestam por instantes ___ muito breves

Há necessidade para o erguer da obra de possuir mecanismos que sejam capazes de captar esses instantes, esses muito breves instantes. É essa a demanda que podemos vislumbrar em diversos momentos neste “Arquitectura de um fragmento”.

Mas este livro cativou-me sobretudo por um motivo. A arte não está dissociada da vida, muito antes pelo contrário. Ela é o reflexo da vida. E sendo-o, o que faz arte não pode, nem deve, como se costuma dizer, assobiar para o lado, fingir que não vê o que o rodeia.

Betty Branco Martins faz, também, da sua poesia uma arma contra o silêncio e a indiferença. Leia-se o poema “A ___ única ___ testemunha” ou “A ___ terra ___ às avessas”. São poemas com imagens fortes, poderosas a que ninguém pode ficar indiferente. Do segundo, retirei esta quadra que agora vos leio.

O sol ficou prisioneiro
Dalguns ___ que disseram ser seus compradores
A chuva em cestos de verga ___ era o seu dinheiro
Leveza dos sonhos ___ mortos pelos senhores


Ou do poema “estão vazias __ vazias”, este verso:

Povo de bolsos vazios. d'onde roubaram tudo __ até o cotão

Arquitectura de um fragmento” é de facto um livro que vale bem a pena decifrar.

Muito obrigado

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