sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

2008-12-17 - Palacete Viscondes de Balsemão (Porto) - Apresentação de: “27 poemas”, de António Rebordão Navarro (Edium Editores, 2008)

Muito boa noite,

27 Poemas” é um livro que me trouxe ao longo destes vinte anos gratas surpresas (destaco cinco):

Primeira, o prazer da sua descoberta e leitura;

Segunda, o sorriso malandro do meu filho quando o garatujou;

Terceira, a novidade que o Jorge Castelo Branco me anunciou, a da sua reedição;

Quarta, o autógrafo do autor nessa edição de mil novecentos e oitenta e oito e o desafio para escrever o prefácio a esta reedição;

E, por último, a quinta surpresa (e esta bastante inesperada – creio que foi numa tarde de sábado, só pode ter sido numa tarde de sábado), a de vir aqui apresentar esta obra.

Não sendo surpresas a mais para um livro, sobretudo de poesia, pela própria natureza deste género literário, tal, ao nível pessoal, excedia todas as expectativas.

Após o meu sim, que foi imediato, caí na realidade. Por quê eu? Eu que este ano tive a sorte de apresentar obras de autores que muito admiro como José-Augusto de Carvalho e José Félix, poetas que encontrei através da internet e que a Edium em boa hora editou. Dois nomes que hoje podem ser meramente isso: dois nomes; mas, estou certo, que o futuro lhes dará o crédito que bem merecem.

Pois bem, o próprio livro guarda, e revela a quem o ler, a resposta a essa pergunta. Vendo bem, só podia ser este, ou seja: eu, a fazer esta apresentação.

A chave reside no poema: “O grito”, onde Rebordão Navarro escreve o seguinte, e passo a citar:

essa tarde de sábado em Coimbra,
(Rua da Sofia, há muitos anos),
em que me insultaram de poeta.

É, portanto, pelo exposto, minha estrita obrigação vir aqui à cidade do Porto, eu, que trabalho no Jornal Centro cuja sede se situa na Rua da Sofia, em Coimbra, repetir o insulto.

E se assim é, que assim seja.

Pois fique sabendo, caro Rebordão Navarro, que, quer queira quer não, é mesmo poeta.

Bom, mas não estando na minha cidade, tenho de ter mais cuidado com o que digo. O melhor é justificar a repetição do insulto.

Recorro a um excerto de uma matéria publicada no Jornal de Letras, a vinte e quatro de setembro último, sob o título de “O poeta na cidade, hoje”, de Eduardo Lourenço, onde este, a dado passo, escreve o seguinte, e passo a citar:

(...) os que sob a superfície lisa das águas escutam um rumor, um apelo que, literalmente falando, os não deixa viver, ouvindo o já ouvido, mesmo o mais belo e sublime, e buscam por sua conta a melodia única que lhes explicará o tempo que é o seu próprio tempo, e que não sossegam enquanto o não inventam e se perdem nele para se salvar. São eles que nós chamamos de poetas. São os que acrescentam a criação à criação e assim renovam o mundo. (1)

Fim de citação.

Rebordão Navarro enquadra-se neste possível esboço do que é, ou pode ser, o poeta. O que busca “por sua conta a melodia única que lhes explicará o tempo que é o seu próprio tempo”, o que acrescenta “a criação à criação e assim” renova “o mundo”.

E este seu livro: “27 poemas”, sob a capa de uma pretensa aridez anunciada pelo próprio título, corrobora essa afirmação.

Estamos perante uma obra que classifico, como no sítio da Edium se escreve, e a meu ver bem, “um dos segredos mais bem escondidos da poesia portuguesa” (2), ao que acrescento: segredo que é urgente desvelar.

Mas entremos no livro, neste “27 poemas”.

Este volume sugere-nos, pela natureza do título, uma mera compilação de poemas. Algo sem um fio condutor, desprovido de uma ligação interna.

No entanto, ao abri-lo, deparamo-nos com um poema cujo título poderá ser demolidor dessa ideia. Lê-se: “Profissão de fé”; ou seja: uma declaração pública daquilo em que se crê; e onde o poeta nos oferta esta quintilha, que é, na minha opinião, a parcela mais relevante e que passo a citar:

Eu sou, minha senhora, a sua sombra.
Estou consigo quando você se esvai,
me castiga ou compõe
com religiosos dedos a gravata
sob o colarinho amarrotado.

Fim de citação.

É, na minha leitura, o primado da vida. A morte, que encontro nesta senhora, perde o seu estatuto perante o homem, perante aquele homem que, tomando consciência plena desta, agarra com ambas as mãos o leme do seu próprio caminho. Ele é a sombra da morte, não o contrário.

Esta firme convicção em o poeta poder tomar como que posse da morte, ou seja: do medo, do medo último, para ganhar os argumentos essenciais para a plena fruição da vida.

Naturalmente que o amor, melhor: a relação amorosa; é um desses possíveis argumentos. Aliás, ele está bem presente na sensualidade patente no poema “Movimento marítimo”, embora nunca perdendo de vista que é, tal como se refere em “Declinação do amor”, e cito:

Por ele [ou seja: o amor] nos vamos destruindo.
Corroídas, as palavras
sobem ao céu da boca, crucificam-se,
sabem a língua morta.

Fim de citação.

Em suma, leio aqui que o amor não se faz. Muito provavelmente nem se construirá. O amor é. E só desta forma ele deixará de ser um possível argumento, mas um dos mais relevantes argumentos para a tal plena fruição da vida.

Falei desta convicção, a de tomar como que posse da morte. Ela conduz à possibilidade da fundação do templo, um espaço interior, íntimo, a que Rebordão Navarro, naturalmente esta é a minha leitura, denominará posteriormente de casa.

No primeiro de dois poemas intitulados: “A fundação do templo”; observamos um interessante jogo de antíteses. Como exemplo: “Você pode ser lúcida e ser louca” ou “Você é uma lâmina, / ou um lago deixando-se sulcar”. No fundo, estamos aqui, apesar de ser o templo interior, íntimo, a observar, neste jogo de verso e reverso, uma imagem do mundo, do real e do mundo outro que só a boa poesia pode criar. Embora este último seja um mundo outro, diverso, não está dissociado do real. O mundo é um eterno jogo de opostos.

E é por isto que há pouco afirmei que o templo passa a ser casa. Embora lugar de refúgio, de protecção, mas também de afecto, é ponto de partida e de chegada, é espaço de reflexão que, permitam-me a expressão, só o nosso próprio cantinho propicia e potencia.

De novo, as convicções. No primeiro poema deste tríptico intitulado: “As casas (...)”, Rebordão Navarro lega-nos isto, e cito:

Fizemo-nos as pedras do edifício

Fim de citação.

Embora exista a passagem de templo, espaço sagrado, de veneração, para casa, espaço habitado, logo mais ligado à vida, ao quotidiano, eles, templo e casa, persistem no poeta, no construtor do poema. Melhor: o poeta é templo e casa. São a mesma entidade, o mesmo ser.

E é aqui, neste ponto, nesta junção entre o interior e o exterior, não só do mundo real, mas do mundo outro que a poesia revela, que chegamos ao epicentro deste livro.

Um simples cálculo matemático seria suficiente para o determinar, mas, perdoem-me os matemáticos, ler é muito mais divertido.

Ora bem, se são vinte e sete, o décimo quarto está à mesma distância do primeiro e do último.

Esse poema, o tal epicentro do livro, tem o nome de: “Concerto”; um nome que por si só já nos diz muito. É um poema singular neste volume, marca a diferença relativamente aos outros vinte e seis enformadores da obra. É o único dedicado, neste caso a Silvestre Fonseca e é, também, o único datado, desta feita consta: Vila Viçosa / 09-06-1987.

Para além de nos mencionar o óbvio, mas algo só adquire essa característica porque alguém o disse, ou seja: todo o poema é dedicado a algo ou a alguém e todo o poema nasce ou ganha a forma com que se apresenta ao outro, ao leitor, num determinado lugar e numa determinada data, refere-nos da importância da musicalidade no poema.

E esta musicalidade, que as palavras também constróem, para além da sua fundamental carga racional, desperta no outro, no leitor, o lado emotivo.

Como refere Fernando Pessoa, num texto sobre estética, e passo a citar:

um poema é um produto intelectual, e uma emoção, para ser intelectual, tem, evidentemente, porque não é, de si, intelectual, que existir intelectualmente. Ora a existência intelectual de uma emoção é uma existência na inteligência – isto é, na recordação, única parte da inteligência, propriamente tal, que pode conservar uma emoção. (3)

Fim de citação.

Talvez por isso, digamos assim, a segunda parte do livro se inicie com o poema “Cor-cordis”, o espaço referencial do coração, aqui, pelo menos assim o leio, como espaço onde a memória habita, a tal recordação referida por Fernando Pessoa. E este reavivar da memória é bem patente pelo engenhoso processo anafórico presente neste poema.

Aliás, a importância da memória na construção da obra é sublinhada pelo poeta quando este afirma no poema: “As águas”, o seguinte:

Em vão nada se faz, nada se queima.
Projectam-se partos na memória.


Em jeito de resumo, diria que “27 poemas” é uma viagem. Uma viagem com amor e morte, que são os grandes temas da poesia, mas onde a própria poesia é, de facto, o tema. Essa enigmática figura que nos surge amiúde referida sob o pronome “você”. Mas toda esta viagem é-nos servida com diversas referências culturais e com o registo crítico e irónico que, quase direi, são a imagem de marca do autor.

Para concluir, porque o poeta não permitiu ao amante viver até ao fim do filme, deixando essa revelação exactamente no dístico derradeiro, afirmando a sua morte na coxia, permitam-me que descubra um porto. Por isso, deixo-vos um poema, um poema que tem como título um espaço bem concreto: “Porto 1”:

Um dia, a palavra fez-se carne.
Ou sucedeu justamente o contrário?

Obrigado


(1) LOURENÇO, Eduardo – “O poeta na cidade, hoje”, in Jornal de Letras, de 24 de Setembro de 2008, pág. 39

(2) Edium Editores, in http://ediumeditores.wordpress.com/proximos-lancamentos/ (último acesso a 2008.12.15)
(3) PESSOA, Fernando – Obras Completas III, RBA, 2006, pág. 199

3 comentários:

José Félix disse...

camarada

li atentamente o texto de apresentação da obra de rebordão navarro. tendo os instrumentos necessários, é claro, faz-se outro texto literário acerca de uma obra.
parabéns!
agradeço a referência que fizeste à minha pessoa como autor.

abraço

josé félix

jorge vicente disse...

camarada,

que apresentação fantástica a tua!!!!

um grande abraço
jorge

Unknown disse...

Camaradas,
Obrigado por estes vossos comentários. Foi um momento importante neste meu "carreirismo".
Um abraço
Xavier Zarco