terça-feira, 31 de março de 2009

[No recorte da luz]

No recorte da luz,
descobre a forma,
a fonte
onde os sentidos se projectam
e esboçam o corpo
fugidio do vento.

segunda-feira, 30 de março de 2009

[no princípio]

no princípio
era somente um frémito
um desejo inexplicável
que percorria o sonho
habitando o sonho
trepando os mastros da insónia

depois
era a imagem conquistando
contornos concretos
definidos
definitivos

agora
era missão
empresa
sentido
de uma viagem
rumo ao centro do ser

ou seria somente a ascensão
o movimento
rente ao coração da aura
iluminada de dentro

domingo, 29 de março de 2009

[no corpo]

no corpo
da freicha

o rumor
da infância

criança
brincando

na raiz
da memória

sábado, 28 de março de 2009

[no corpo]

no corpo

um frémito
percorre

dos joelhos
às mãos

do ventre
da terra
ao desejo

ensejo

do infindo

mor crença
que uma palavra
marque
a diferença

entre ficar
e voar

sexta-feira, 27 de março de 2009

[longe]

longe

a palavra
é flor

pétala
a pétala

exposta

riso
de sol

ardendo

na voz
que constrói

o poema

quinta-feira, 26 de março de 2009

[Lentamente, recolhe o olhar. Cada]

Lentamente, recolhe o olhar. Cada
Movimento é perpétuo, se for
De teu desejo imenso e anterior
Ao acto de captar a luz. Alada,

Evola entre veredas. Por um nada,
Uma réstia oblíqua em redor
Do tempo, aguarda um traço, rumo ao mor
Destino – teu olhar puro. Dependurada,

Ficaria a tela, a obra última, canto
Supremo de poeta infante, pleno
De música, de ritmo, de memória,

Escultura de pedra fria, encanto
Que ganha vida, alento. Pois sereno
Fica quem reinventa o andor da História.

quarta-feira, 25 de março de 2009

[há aqui, exposto, o cântico]

há aqui, exposto, o cântico
segredado dos amantes

percorre
a mansidão destas águas
que acariciam as rochas
e invade os íntimos recantos
do poema
em música e ritmo

dá-me a tua mão
caminhemos
rente a este rio até ao mar

enlacemos
o destino deste rio
saboreemos
o sabor do sal

é regra dos amantes
amarem o caminho
a estrada
que abraça o sol nascente
e o sol poente
num só gesto

terça-feira, 24 de março de 2009

[Faz parte do voo]

Faz parte do voo.
Cia raso
à epiderme da emoção.

Cada verso é um instante,
um momento
em que as mãos conjugam
a suprema olaria das estrelas.

segunda-feira, 23 de março de 2009

[ensaio]

ensaio
de novo
a vertigem
do voo

como aprendiz
de um gesto
no limiar

da queda

domingo, 22 de março de 2009

[Enlaça o movimento. Cada estrela]

Enlaça o movimento. Cada estrela
é um ponto de chegada.
Um destino a ser cumprido.
Há que alcançar as estrelas.
Beber a luz. Ser corpo da elipse.

sábado, 21 de março de 2009

[em cada casa]

em cada casa
oculto
o mundo
em impreciso
mapa

onde os homens
moldam

peça
a peça

o seu próprio
barco

sexta-feira, 20 de março de 2009

[Esta é a minha língua, a minha arma]

Esta é a minha língua, a minha arma,
a minha alma, utensílio com que aro
os campos do poema. A que Camões
cantou em verso heróico pelo Tejo,
Ganges, Índico, Atlântico. A mesma
que Pessoa fez pátria e Vinícius
canção. Esta é a língua que sabe
a sal de mar e lágrimas. Matéria
reinventada em O’Neill. Amada por
Drummond. Esta é a língua do sonho,
caravela, avião, foguetão, bola
de Gedeão cruzando estrelas nas
mãos de uma criança, a ave do poema,
que recria e ilumina cada verso.

quinta-feira, 19 de março de 2009

[esta é a mão]

esta é a mão

arado que sulca a terra
para semear
o futuro

cinzel
que trabalha a pedra
para erigir
a memória

quarta-feira, 18 de março de 2009

[esta é a fé]

esta é a fé

que molda o sonho
calor intenso
imenso

que promove as asas
o voo

que afaga a face
quando o poente
nasce

terça-feira, 17 de março de 2009

[esta é a arma]

esta é a arma

a língua
e povo e movimento

olhar longe
e adormecer sob as estrelas

ser poema
na certeza da alvorada

segunda-feira, 16 de março de 2009

[esquece o vento que te empurra]

esquece o vento que te empurra
só tu dirás
do teu destino

domingo, 15 de março de 2009

[Escuto na distância o brotar]

Escuto na distância o brotar
do poema. É rumor breve, mas denso.
Despertar os sentidos todos como
um abrir de janelas na fria al-
vorada para ver nascer o sol.

sábado, 14 de março de 2009

[Escrevo na folha do outono]

Escrevo na folha do outono
as asas com que voo
rente ao teu olhar

sexta-feira, 13 de março de 2009

[Era uma vez um pássaro que se]

Era uma vez um pássaro que se
chamava Enola Gay. Gostava de
rosas breves que, céleres, buscassem
o limite do mundo, o cume azul.
Sob a trémula luz de uma candeia,
uma criança lê, a medo, o Livro
do Apocalipse. Soam no ar trombetas.
Quebram-se selos. Caem as sementes
que nas garras o pássaro trazia.
A criança adormece, mas não sonha.
Aguarda, simplesmente, que, da terra
onde a rosa nasceu, brotem os quatro
cavaleiros: a Fome, a Pestilência,
a Guerra e a Morte; e habitem esta noite,
o ventre desta noite. A mais escura,
a mais cruel das noites todas, todas...

quinta-feira, 12 de março de 2009

[Era uma vez um moleiro]

Era uma vez um moleiro
Que se chamava Manel
Que passava o dia inteiro
Num moinho de papel

Moía a mó todo o dia
Palavras e sentimentos
Que muitos sacos enchia
Para carga dos jumentos

Do celeiro ao moinho
Do monte para a cidade
Desenhavam o caminho
Para um verso sem idade

Pelo pão que se fazia
Dessa farinha tão fina
É que cantava a alegria
Do menino e da menina

Num moinho de papel
Entre o pó de cada dia
Estava o moleiro Manel
Que moía que sorria

quarta-feira, 11 de março de 2009

[Entre livros, revistas e jornais]

Entre livros, revistas e jornais,
que nos cheguem catálogos de hiper-
mercado. Que nos tragam os desejos
postos em mostruário de espanto,
férteis em promoções, facilidades
de pagamento, crédito sem juros.
Venham todos parar à minha caixa
de correio. Estou farto de notícias,
literatura. Quero movimento,
estantes com apelos sedutores,
os carrinhos de compras em corridas
desenfreadas. Compras úteis e
inúteis. Quero, duma vez por todas,
reduzir o meu mundo à dimensão
de uma simples dispensa ou frigorí-
fico, um pouco maior, ligeiramente,
que as dez sílabas métricas de um verso.

terça-feira, 10 de março de 2009

[entravas]

entravas
pelas arestas do fogo,
consumindo a memória das mãos
por sobre o ventre,
conjugando as palavras todas
pela gramática dos sentidos.

talvez
fosse somente um esboço de um desejo,
um frémito nos lábios,
a língua
como insecto tresloucado
contra a luz.

imagens que se projectam
na calvície do nada.

ou o verbo,
gesto preso ao palato do poema,
nado grito na boca do silêncio.

e aguardavas,
deixando o corpo na pedra
junto ao caminho.

só o pó
continuava o seu curso,
como rio seguindo o seu destino,
nas sandálias do vento.

o que restara,
ficara inscrito
na madeira do poente,
na sua caligrafia
matizada.

dilúvio
de imprecisas formas
com que acolhes o poema
e saúdas a partida,
a derradeira viagem,
o túnel
espiralado do olvido.

segunda-feira, 9 de março de 2009

[Enterro o machado da guerra]

Enterro o machado da guerra.
Desejo cruzar as searas
de corpo curvado e ceifando
a doce colheita. Estas mãos
tocando o ouro dos teus cabelos.

domingo, 8 de março de 2009

[Entardecia. A aldeia acendia o]

Entardecia. A aldeia acendia o
seu candelabro. O vale era uma manta
feita do mais suave pano com
que o céu acolhe o corpo dos amantes.
Larguei, então, as mãos para espreitar
as estrelas caídas sobre a terra,
a seara de luz, a gambiarra
e senti-lhe o fecundo ventre, a pele
onde, serenamente, adormeci.

sábado, 7 de março de 2009

[Em teu rosto de princesa]

Em teu rosto de princesa
Das lendas de era uma vez
Alias tua beleza
À magia da altivez

sexta-feira, 6 de março de 2009

[Em silêncio, esperei pela palavra]

Em silêncio, esperei pela palavra,
somente uma palavra que reabra
o templo onde guardo cada instante:
minha vida, minha obra, minha lavra.

quinta-feira, 5 de março de 2009

COIMBRA

Eis Coimbra: cidade, poema,
mulher. Fecundo ventre onde indago
a palavra inaugural.

quarta-feira, 4 de março de 2009

[É nas mãos que nasce o gesto]

É nas mãos que nasce o gesto
Xavier Zarco

É nas mãos que nasce o gesto;
onde reside o fogo de criar
na frondosa árvore a caravela.

Sentir, na seiva, a carícia,
o cântico do vento
pelas veias vegetais.

Observar o destino das raízes
e, por elas, aprender
o ofício navegante.

terça-feira, 3 de março de 2009

[eis a magia do regresso]

eis a magia do regresso:
cada palavra inaugurando
o eterno cântico do cosmos.

segunda-feira, 2 de março de 2009

[Diziam que suas mãos]

Diziam que suas mãos
moldavam o caos.
O intenso frémito
da criação extrema. Guardava o ouro
em seus dedos de crisálida.
Tangia guitarras
de espuma na densa muralha
do cosmos. Era música ou memória
de um silêncio
anterior
a qualquer deus.
O moldador do fogo e das palavras.

domingo, 1 de março de 2009

[Dessas aves]

Dessas aves
adoradoras do sol
já nada resta.
A lembrança de um desenho.
Um voo sobre a infância.
Sobre um tempo de
mistério e solidão.

sábado, 28 de fevereiro de 2009

[Desejo ser um pastor]

Desejo ser um pastor
E tocar a flauta ao vento
Entregar-lhe minha dor
Com laivos de sentimento

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

[deram-te]

deram-te
a enxada

para que cavasses
fundo
a cova

onde
como semente
deitaste
o verso

as palavras
frondosas

que domam
o vento

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

[da boca]

da boca
nasce o grito
óvulo em chama
pássaro tresloucado contra as grades
do silêncio
longe
o eco proclama
o que se liberta
abre-se à diáspora
peregrina que anseia a eternidade

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

[Criámos a arte como se esboçássemos]

Criámos a arte como se esboçássemos
um caminho de regresso
a casa. A uma linguagem
inicial, repleta de sentidos.

Talvez o equilíbrio
perdido anunciado por Piet Mondrian.

Uma viagem no tempo
antes do tempo o ser.

Imaginamos
um mundo sem Babel. Um mundo pleno
que cabe no côncavo
das mãos ao reflectirem
sobre a água
que acariciam e guardam.

Mas resignamo-nos
a um naco de palavras sobre a mesa
com que inventamos amor e ódio,
com que definimos
vida e morte,
com que moldamos o trilho
do viandante, atribuindo
a cada coisa um nome
para a nomearmos,
e a cada nome um rosto
para que a representemos.

Cada vez mais longe
e, no entanto...

Observa,
há uma estrela
a sorrir no firmamento.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

[corpo:]

corpo:
via
exposta
ao
rigor
da
música,
à
suprema
linguagem
do
cosmos

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

[contei-te do verso amar]

contei-te do verso amar
a conjugação do sonho
mas não do gesto nado em mim

domingo, 22 de fevereiro de 2009

[com o olhar fecundo]

com o olhar fecundo
de distância

a mulher
vestida de estrelas
enchia a casa
com as matizes da noite

embriagada de lua
olhava-se no íntimo
dos espelhos

seu rosto ardia
pungente reflexo do parto
que a noite promove

sábado, 21 de fevereiro de 2009

[captei o íntimo do olhar]

captei o íntimo do olhar
o sonho explodindo
nas pétalas das lágrimas

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

[arrisco a voz]

My voice goes after what my eyes cannot reach

Walt Whitman


arrisco a voz
no prenúncio da queda

cada desejo é maior
que o próprio destino

o supremo cartógrafo
desenhara
o mapa da vida
tecera os contornos
do movimento
da respiração

minha voz indaga
o que meus olhos
não podem alcançar

mas persisto

arrisco o canto
o poema como ave
que desconhece amarras
e que de azul pinta
o fulgor do sonho

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

[brota]

brota
o sol

por onde

o olhar
repousa

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

[Aproxima-se, o vento era a sua obra]

Aproxima-se, o vento era a sua obra,
o fruto do seu gesto nas arestas
da terra. Aí, ficou observando o
movimento, os cabelos que se soltam
da raiz da escultura que molda
o corpo peregrino e ágil do verbo.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

[Aprendo a voar. A sentir]

Aprendo a voar. A sentir
a queda, a espiral, a atracção –
respiração contida. Arde
dentro a arte da morte. Explosão
de um verso – poema que foge.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

[após cada palavra]

após cada palavra
outra se esboça

argila
moldada pelo tempo

ao rigor do olhar

domingo, 15 de fevereiro de 2009

[ao longe]

ao longe
o sol arde
na floração do mar

sábado, 14 de fevereiro de 2009

[Ao longe, onde o poema nasce, sente-se]

Ao longe, onde o poema nasce, sente-se
o frémito da sílaba esculpida,
o murmurar da pedra, o olhar que medra
no vértice do tempo, cada gesto
é uma ave que voa para a luz,
é o desejo de água correndo
que a mão acolhe e a boca pronuncia.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

[Ao fundo, ouve-se o vento sussurrar]

Ao fundo, ouve-se o vento sussurrar
na copa do poema. De seus ramos
se desprendem os frutos que voam
para junto do olhar desperto ao sonho.
É aí, no recanto onde os sentidos
aprendem o supremo ofício, a
melodia das coisas simples, que
pulula a arte, a palavra inaugural.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

[Almejo um rosto]

Almejo um rosto
perto da fonte dos desejos
Um beijo na face dos dias
Um silêncio maior
que o próprio infinito

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

[Alinhei as palavras]

Alinhei as palavras
...................uma a uma
na tela depurada do silêncio.

Bebi
.....de sua música
...................a poesia
o ritmo iluminando a voz
.........................o vento
levando ao colo cada verso nado

Sentei-me
..........do riacho ao fundo
.............................som
sussurro subtil de água brincando
com o dócil cabelo da paisagem

E o olhar liberto
..................solto no horizonte
onde
.....o que nasce
.................é breve e permanente

Das palavras
.............sei pouco
.......................são semente
corpo alado rumando para o sol

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

[Agarro na gota de orvalho]

Agarro na gota de orvalho
que beija a epiderme da rosa.
É nela que entendo Narciso.
Seu nome será lago. Seu rosto
será candeia dos meus olhos.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

[Adormecera à beira-rio com]

Adormecera à beira-rio com
o sorriso do sol no espelho de água,
com o rumor das aves no poente.
Descobrira, na música das árvores
o caminho, a viagem rumo ao ventre
onde todos os sonhos nidificam.
E deixou-se ficar frente ao poema
colhendo em cada verso o seu sustento.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

[acordo o murmúrio]

acordo o murmúrio
acendendo na memória
o distante cigarro do silêncio

pela noite dentro
um homem se despenha
um vulto se desenha

talvez a face resista
à pressão do tempo

à mão do escultor
que cria a máscara
na cabeça da criança

sábado, 7 de fevereiro de 2009

[acordo com o riso]

acordo com o riso
........................................das gaivotas
........................................só ficou
........................................o bater
........................................breve de asas
........................................afagando
........................................o silêncio
do teu corpo
................dormias
........................................era cedo
........................................maduro o
........................................fruto pende
........................................e desenha
........................................o desejo
........................................de cair
novamente nas águas secretas
íntimas e profundas
........................................das gaivotas
........................................e dos frutos
........................................resta o olhar
........................................da memória
........................................quadro
..................................................espelho
reflexo dos teus olhos quando acordas
e me chamas e acolhes no teu corpo
o meu corpo
................voemos para o sol

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

[Acordei cedo. Cedo demais tal-]

Acordei cedo. Cedo demais tal-
vez. Aqueço café. Entre mãos, guardo o
calor da porcelana. Saio. Vou
para a varanda. É fria a brisa que
me diz bom dia. É bom dia, acordei
a tempo para ver os malmequeres
abrirem suas pétalas para o
sol saudarem. Bom dia, mundo. Fecho
o caderno dos versos e vou com
o sol rumo ao eterno nascimento.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

[acendo o silêncio]

acendo o silêncio

a vida
prepara-se para romper
o sexo da noite

descende da cepa do vento
que errante
deseja as cavernas
descritas na face do tempo

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

[acendi um cigarro]

acendi um cigarro

senti que estava a despertar
uma história antiga

do fumo
que ondulante ascendia
retirei
o esboço dos teus cabelos

de súbito
a tua face
o sorriso exposto
de uma noite de luar

mágico e sereno

como este rio
que se espreguiça em seu leito

e as tuas mãos
de seda e linho

capazes de afagar o vento
de lhe descobrir o corpo

que na constante fuga se oculta

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

[a madrugada]

a madrugada
é poema edificado
tempo do desejo
de sentir teu corpo
como meu

inventar o movimento
semear sentidos
murmúrios
no iluminado ventre
das palavras

e embarcar
naufragar

ir à deriva no teu rio
até que o mar me engula

e adormeça

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

[a cidade é um canto iluminado]

a cidade é um canto iluminado

surge a sua voz
na face do rio

com o côncavo das mãos
recolho as sílabas
bebo-lhes o ritmo

incendeio os lábios
com as palavras que se formam

e semeio os sentidos
para que os colhas

em cada estrofe
em cada verso

domingo, 1 de fevereiro de 2009

[A cidade adormecida]

A cidade adormecida
Repousava em meu olhar
Tal como uma ave ferida
Com vontade de voar

É meu corpo desenhado
Desejado de mulher
Sobre a colina deitado
À mercê de quem vier

sábado, 31 de janeiro de 2009

[A chuva resignara-se e deixara]

A chuva resignara-se e deixara
de cair, de plantar sobre a terra o
seu perfume. Na sua companhia,
regressei para o ventre de uma nuvem.
E como é belo o mundo quando o olhamos
no mais doce recanto da memória.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

[a boca mineral]

a boca mineral
liberta o grito
na angústia do silêncio

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

[a ave]

a ave
canta

o canto
da árvore

o sol
que repousa

nos beirais
da música

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

[a arte de deus]

a arte de deus
o oleiro do caos
o moldador do caos

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

[a argila]

a argila
espera

a mão
da criação

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

[podes conquistar]

podes conquistar
a liberdade
quebrar os grilhões do templo
onde oras
para um deus incognoscível
e externo a ti

domingo, 25 de janeiro de 2009

[perdido o sonho]

perdido o sonho
há que rumar para a distância
como se sereias
cantassem em teu redor
e no ardil da espuma
a tua própria vida
projectada fosse
para nos remos sentires
a sofreguidão da sorte
como brancos dados
em verde pano lançados

sábado, 24 de janeiro de 2009

[Pelas margens do Pó, está Lampetusa]

Pelas margens do Pó, está Lampetusa
Chorando a queda, a perda por Apolo
E Clímene sentida. O que recusa
Os seus olhos, reclama o seco solo,

Mas é Pó quem recebe em suas águas
As lágrimas por Fáeton choradas.
E em silêncio correm suas mágoas
Qual veleiro de velas desfraldadas

Em cujo ventre o vento desabita.
E se no rio Faéton caiu
Não foi no esquecimento, pois medita
Lampetusa que em pranto se sorriu:

De Júpiter, o poder não é maior,
Se lembrado é de quem se sente a dor.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

[Pascentavas o vento com a]

Pascentavas o vento com a
candura ancestral de Pã.
Sentias nos lábios
o odor breve
das romanzeiras. Era música
o que moldava a face agreste
das pedras quando o vento se deitava
e adormecia rente às árvores
do poema. E ficavas sentado
junto ao sol aguardando
o rosto do poente.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

[parto]

parto

sempre
parto

ergo
a vela

e vou

sou corpo
ao vento

sou vento
e vou

e voo

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

[parte]

parte
demanda um horizonte
distante
por onde aves arrisquem
ser o teu próprio olhar

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

[onde repousa o livro, nascem]

onde repousa o livro, nascem
as mãos do tempo nele inscrito.
cada palavra, em seu redor,
o encanto guarda, para que,
rente a teus olhos, a explosão
abra tua alma para o sentido
da descoberta: o decifrar
de cada beco da memória.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

[ofício]

ofício

trabalhar
as secretas
matérias
em eterna
mutação

desbravar
a memória
e a vivência

indagar
na voz
signos
e ritmos
ancestrais

domingo, 18 de janeiro de 2009

[Observaste o mar lânguido e sereno]

Observaste o mar lânguido e sereno.
As ondas, em revolta, retorquindo
a dor do vento, bátegas ferindo
o dorso do azul prenhe de um pequeno

sonho, quase viagem rumo ao aceno
breve da espuma, em torno, desavindo,
de seu próprio corpo. Mas sentindo
esta tranquilidade de mar pleno,

criaste no olhar velas que, sedentes
de sopro, se estenderam por inteiro,
bebendo calmarias e sonharam

as fúrias passadas, mas ausentes,
agora, no momento em que ligeiro
as amarras se ergueram e se soltaram.

sábado, 17 de janeiro de 2009

[observa]

observa
com a lentidão própria
de um aprendiz
que enceta a busca da perfeição
o rumo das aves
que partem
para uma sempre nova primavera

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

[observa]

observa

dançam
os astros
sob o atento
olhar
que circunda
o poema

há-de a palavra
e o ritmo
escavar
cavernas
na sofreguidão
do sonho

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

O VELHO CARDINA

Lá vem o velho Cardina
mais direito do que a estrada.
O vinho dá-lhe a bolina
mais lentinha, quase nada.

Usa toda, toda a rua,
mas a culpa não é dele,
porque a curva foi p’rá lua
e não esperou por ele.

Triste do Cardina. A filha
anda por terras das franças.
Ele fuma a cigarrilha,
mas ninguém vem de vacanças.

Pobre do velho Cardina.
Há pouco a mulher morreu.
Agora só vinho e urina
é o que tem como seu.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

[o tempo]

o tempo

quinta essência

constante
permanente

que imana
e transcende

em cada instante

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

[o sal]

o sal

condimento
de verso

de voz
que se ergue
e canta
a lonjura

a memória
a edificar

de uma viagem
azul

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

[o regresso]

o regresso
é um poema
que se anuncia

calmo

como as águas
de um lago

domingo, 11 de janeiro de 2009

[O que vês no rio que a teus pés corre?]

O que vês no rio que a teus pés corre?
A magia do nascimento ou o fascínio
da morte? Ou talvez o rumo, o certo
rumo entre margens preso. Movimento
insano por um só gesto de liberdade.
No ressoar das águas, o espelho
de um tempo repleto de memórias.
Retábulo embutido num templo.

sábado, 10 de janeiro de 2009

[O que te falta, meu caro, é]

O que te falta, meu caro, é
fumar um Chesterfield
e saberes que Bogart está em
cada travo, em cada
lufada
de fumo ascendente.

É descobrir
por que a vida é somente o contínuo
acto de respirar,
de indagar
a morte que se aproxima.

Abreviar o caminho,
cometer o destino a um atalho,
é ser dono da própria existência.

Não olhes para o lado.
Em redor
a espuma é breve e se recolhe
com o mar que
foge.

O olhar perde-se
com o poente
e não há sol que abrace o poema.

Nada, meu caro, é o instante
em que o vives,
e já passou,
já nada existe.

Não é tempo,
que não passado ou futuro.

Lembrares quem morreu,
seu nome,
seu rosto que é ténue
esboço em tua memória,
é, somente,
aditar o certo.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

[o poema mora dentro]

o poema mora dentro
deste casario. dentro
de cada olhar reside no
próprio ventre do silêncio
com que meditas sobre o mundo.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

[o poema]

o poema
é de pedra
feito

clausura
de teorema
a resolver

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

[o ordenador]

o ordenador
do caos
é o que a arte
sente

a arte
sonha

e a vida
avista
sob o voo
de uma ave
cujo corpo

como seu
habita

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

[o oleiro]

o oleiro
regressara

incompleta
a obra
aguarda

paciente

que as mãos
na argila
reencontrem

a mágica
fórmula
de acordar

a secreta
forma
nela
oculta

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

[O guardião do templo aguarda]

O guardião do templo aguarda
que da última pedra
reste somente a memória
como se cada palavra
de cada poema
a vida ganhasse
na voz de outrém

Ao sabor das sílabas
que os rios sussurram
ao sentirem o parto
da sua agonia
o mar
ele espera
que se edifique um novo sentido
um mistério sempre renovado
a cada instante
em cada momento
de um eterno caminho em demanda
da perfeição

Sente
por sob a sua pele
que a essência do universo
está no âmago
de cada átomo
de cada estrela
de cada galáxia
de cada palavra

Na construção do poema
sabe que indaga a impossível
comunicação
o respirar de cada verso
como se o sangue
da suprema linguagem
em cada fôlego
se pronunciasse

domingo, 4 de janeiro de 2009

[o guardião]

o guardião
adormecera

ao templo
chegara
o tempo
de abrir

de ser recinto
onde as palavras
trepam
pelas paredes

para te abraçarem
e contigo

partirem

sábado, 3 de janeiro de 2009

[o escultor]

o escultor
ergue
a obra

a respiração
liberta
da pedra

inertes
seriam
as mãos
do sonho

se não sentissem
a forma
oculta

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

[o despertar dos sentidos]

o despertar dos sentidos
é um verso
que demanda o centro

imenso abismo
por onde o corpo promove a queda
o voo
e abraça o mundo

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

[o corpo]

o corpo
suspenso

penso
no verso

conjunto
o tempo

suspenso
o olhar

e retorno
com o vento

ao ventre
das estrelas