quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

[o corpo]

o corpo
as mãos
um vaso aberto
à descoberta de um sonho

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

[o corpo]

o corpo

o peso
imenso
do corpo

âncora
extrema

cadeia
intensa

onde se oculta
a medo
o viandante
do universo

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

[o coração]

o coração
da pedra

sente
o pulsar

e dá-lhe forma

liberta
o corpo

e dá-lhe um nome

domingo, 28 de dezembro de 2008

[O cinzel do instante]

O cinzel do instante
desliza por sobre a colina
onde a cidade se derrama
como se encostasse
a cabeça
no travesseiro das rochas
e o sol tocasse os ténues cabelos
que ondulam
no dorso do olhar.

sábado, 27 de dezembro de 2008

[Nunca a palavra será árvore]

Nunca a palavra será árvore
desnuda e desprovida de vida. A
palavra é fruto gerado
e gerador. Marco geodésico.
Cordão umbilical.
Potência solar,
enigma, teorema,
força íntima do poema.
Sémen que fecunda o ventre
da própria memória.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

[no ventre]

no ventre
da noite

há um hímen
por romper

uma secreta
vulva

um hirto
clitóris

uma chama
por arder

ou um poeta
perdido

e louco

nos beirais
do tempo

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

[no varandim]

no varandim
do sonho

lança
a trança

por ela
treparei

para em ti
me perder

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

[No topo, ao centro, o olhar Cristo descobre]

No topo, ao centro, o olhar Cristo descobre,
Qual rosa cuja pétala se esvai
Sob o peso do orvalho que lhe cai
Para o ventre do cálice que um nobre

De Arimateia, sob a cruz, e sobre
A dura pedra, pôs. Resta o que vai
No olhar seu que sentes no teu. Sai
Nesse olhar, nessa luz. Que em voo dobre

O limite do sonho e da esperança.
Que nesse olhar habite uma lembrança
De paz, de um só instante em que um sorri-

So conquiste do mundo este pendão
Como trofeu de amor. Que Cristo não
Diga: Eli, Eli Lamma Sabactani.

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

[No teu olhar, trazias o vento e as marés]

No teu olhar, trazias o vento e as marés
e a exacta cadência lunar,
exposto brilho em movimento
eterno e terno que acaricia
a quente face do areal
onde o vazio preenche a ausência
em que outrora um batel pronunciava
sede e fome de mar e de infinito.

Das ondas, o infindo azul, o
branco da espuma onde os cavalos
alados do sonho nascem
para atoarem os barcos
sobre o agitado dorso do mar.

No íntimo dos teus olhos, havia utensílios.
Machado, serra, plaina, grosa, lima,
formão, lixa para a faina
das árvores navegantes.
E astrolábio, carta, régua, esquadro,
compasso, cálculo de longitude
e latitude. No teu olhar,
há o momento exacto em que enfunadas
as velas preenchem a linha
do horizonte em silêncio.

Ou somente a distância precisa
medida entre partir e regressar.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

[no teu olhar]

no teu olhar
se decifra
a corola

ampla

de um abraço

domingo, 21 de dezembro de 2008

[No sol de agosto, embarco no poema]

No sol de agosto, embarco no poema
e aguardo
que a andorinha renove o tempo e habite
o voo rumo ao sul
no ventre do outono.

sábado, 20 de dezembro de 2008

Prefácio - "27 Poemas", António Rebordão Navarro (Edium Editores, 2008)



"27 Poemas"

António Rebordão Navarro

(Edium Editores, 2008)


Nota breve



Pois bem, que dúvidas não restem sobre o que compõe este volume de poesia. São mesmo vinte sete os poemas que este “27 poemas” contém. Nem mais nem menos.

Aliás, outra coisa não seria de esperar. Como é do conhecimento de todos, a Matemática é uma ciência exacta, pelo que o erro está posto de parte.

Embora a Matemática seja uma das componente mais importantes da Poesia (ela e a música) o certo é que a aridez deste título pode conduzir o leitor a um erro, a um grave erro.

Este “27 poemas”, embora tenha sido baptizado como tal, traz-nos um enredo, uma linha de continuidade deveras interessante, em que o poeta, insultado como tal, numa tarde de sábado, na Rua da Sofia, em Coimbra, nos oferta um olhar irónico sobre a cidade, a cidade sob o signo helénico.

E é em plena ágora que António Rebordão Navarro nos serve estes seus poemas, os vinte e sete enformadores deste volume. Aí, ele lega-nos a sua visão de morte e de amor, os grande temas de toda a arte poética, mas tudo com uma pitada da tal ironia que antes referi, mas também, talvez sobretudo, a sua própria praxis poética.

Ou seja: “27 poemas” dá-nos um importante contributo sobre a visão do autor acerca da forma como o poeta deve usar a palavra poética, inserindo-a no contexto cultural e social onde se movimenta, erguendo a sua voz mesmo que essa demanda seja “o lugar em silêncio do poema”, mas tudo porque “fazemos de conta / que o fogo não queima, enquanto ardemos” ou não fossemos nós os que nos fizemos “as pedras do edifício”.

Ler este volume é, portanto, deixarmo-nos conduzir, sempre olhando de soslaio, como diz o povo: “um olho no burro outro no cigano”; e enveredar pelos caminhos desta cidade, a dos homens, mas também da poesia.



Xavier Zarco
Coimbra, 26 de Outubro de 2008

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

2008-12-17 - Palacete Viscondes de Balsemão (Porto) - Apresentação de: “27 poemas”, de António Rebordão Navarro (Edium Editores, 2008)

Muito boa noite,

27 Poemas” é um livro que me trouxe ao longo destes vinte anos gratas surpresas (destaco cinco):

Primeira, o prazer da sua descoberta e leitura;

Segunda, o sorriso malandro do meu filho quando o garatujou;

Terceira, a novidade que o Jorge Castelo Branco me anunciou, a da sua reedição;

Quarta, o autógrafo do autor nessa edição de mil novecentos e oitenta e oito e o desafio para escrever o prefácio a esta reedição;

E, por último, a quinta surpresa (e esta bastante inesperada – creio que foi numa tarde de sábado, só pode ter sido numa tarde de sábado), a de vir aqui apresentar esta obra.

Não sendo surpresas a mais para um livro, sobretudo de poesia, pela própria natureza deste género literário, tal, ao nível pessoal, excedia todas as expectativas.

Após o meu sim, que foi imediato, caí na realidade. Por quê eu? Eu que este ano tive a sorte de apresentar obras de autores que muito admiro como José-Augusto de Carvalho e José Félix, poetas que encontrei através da internet e que a Edium em boa hora editou. Dois nomes que hoje podem ser meramente isso: dois nomes; mas, estou certo, que o futuro lhes dará o crédito que bem merecem.

Pois bem, o próprio livro guarda, e revela a quem o ler, a resposta a essa pergunta. Vendo bem, só podia ser este, ou seja: eu, a fazer esta apresentação.

A chave reside no poema: “O grito”, onde Rebordão Navarro escreve o seguinte, e passo a citar:

essa tarde de sábado em Coimbra,
(Rua da Sofia, há muitos anos),
em que me insultaram de poeta.

É, portanto, pelo exposto, minha estrita obrigação vir aqui à cidade do Porto, eu, que trabalho no Jornal Centro cuja sede se situa na Rua da Sofia, em Coimbra, repetir o insulto.

E se assim é, que assim seja.

Pois fique sabendo, caro Rebordão Navarro, que, quer queira quer não, é mesmo poeta.

Bom, mas não estando na minha cidade, tenho de ter mais cuidado com o que digo. O melhor é justificar a repetição do insulto.

Recorro a um excerto de uma matéria publicada no Jornal de Letras, a vinte e quatro de setembro último, sob o título de “O poeta na cidade, hoje”, de Eduardo Lourenço, onde este, a dado passo, escreve o seguinte, e passo a citar:

(...) os que sob a superfície lisa das águas escutam um rumor, um apelo que, literalmente falando, os não deixa viver, ouvindo o já ouvido, mesmo o mais belo e sublime, e buscam por sua conta a melodia única que lhes explicará o tempo que é o seu próprio tempo, e que não sossegam enquanto o não inventam e se perdem nele para se salvar. São eles que nós chamamos de poetas. São os que acrescentam a criação à criação e assim renovam o mundo. (1)

Fim de citação.

Rebordão Navarro enquadra-se neste possível esboço do que é, ou pode ser, o poeta. O que busca “por sua conta a melodia única que lhes explicará o tempo que é o seu próprio tempo”, o que acrescenta “a criação à criação e assim” renova “o mundo”.

E este seu livro: “27 poemas”, sob a capa de uma pretensa aridez anunciada pelo próprio título, corrobora essa afirmação.

Estamos perante uma obra que classifico, como no sítio da Edium se escreve, e a meu ver bem, “um dos segredos mais bem escondidos da poesia portuguesa” (2), ao que acrescento: segredo que é urgente desvelar.

Mas entremos no livro, neste “27 poemas”.

Este volume sugere-nos, pela natureza do título, uma mera compilação de poemas. Algo sem um fio condutor, desprovido de uma ligação interna.

No entanto, ao abri-lo, deparamo-nos com um poema cujo título poderá ser demolidor dessa ideia. Lê-se: “Profissão de fé”; ou seja: uma declaração pública daquilo em que se crê; e onde o poeta nos oferta esta quintilha, que é, na minha opinião, a parcela mais relevante e que passo a citar:

Eu sou, minha senhora, a sua sombra.
Estou consigo quando você se esvai,
me castiga ou compõe
com religiosos dedos a gravata
sob o colarinho amarrotado.

Fim de citação.

É, na minha leitura, o primado da vida. A morte, que encontro nesta senhora, perde o seu estatuto perante o homem, perante aquele homem que, tomando consciência plena desta, agarra com ambas as mãos o leme do seu próprio caminho. Ele é a sombra da morte, não o contrário.

Esta firme convicção em o poeta poder tomar como que posse da morte, ou seja: do medo, do medo último, para ganhar os argumentos essenciais para a plena fruição da vida.

Naturalmente que o amor, melhor: a relação amorosa; é um desses possíveis argumentos. Aliás, ele está bem presente na sensualidade patente no poema “Movimento marítimo”, embora nunca perdendo de vista que é, tal como se refere em “Declinação do amor”, e cito:

Por ele [ou seja: o amor] nos vamos destruindo.
Corroídas, as palavras
sobem ao céu da boca, crucificam-se,
sabem a língua morta.

Fim de citação.

Em suma, leio aqui que o amor não se faz. Muito provavelmente nem se construirá. O amor é. E só desta forma ele deixará de ser um possível argumento, mas um dos mais relevantes argumentos para a tal plena fruição da vida.

Falei desta convicção, a de tomar como que posse da morte. Ela conduz à possibilidade da fundação do templo, um espaço interior, íntimo, a que Rebordão Navarro, naturalmente esta é a minha leitura, denominará posteriormente de casa.

No primeiro de dois poemas intitulados: “A fundação do templo”; observamos um interessante jogo de antíteses. Como exemplo: “Você pode ser lúcida e ser louca” ou “Você é uma lâmina, / ou um lago deixando-se sulcar”. No fundo, estamos aqui, apesar de ser o templo interior, íntimo, a observar, neste jogo de verso e reverso, uma imagem do mundo, do real e do mundo outro que só a boa poesia pode criar. Embora este último seja um mundo outro, diverso, não está dissociado do real. O mundo é um eterno jogo de opostos.

E é por isto que há pouco afirmei que o templo passa a ser casa. Embora lugar de refúgio, de protecção, mas também de afecto, é ponto de partida e de chegada, é espaço de reflexão que, permitam-me a expressão, só o nosso próprio cantinho propicia e potencia.

De novo, as convicções. No primeiro poema deste tríptico intitulado: “As casas (...)”, Rebordão Navarro lega-nos isto, e cito:

Fizemo-nos as pedras do edifício

Fim de citação.

Embora exista a passagem de templo, espaço sagrado, de veneração, para casa, espaço habitado, logo mais ligado à vida, ao quotidiano, eles, templo e casa, persistem no poeta, no construtor do poema. Melhor: o poeta é templo e casa. São a mesma entidade, o mesmo ser.

E é aqui, neste ponto, nesta junção entre o interior e o exterior, não só do mundo real, mas do mundo outro que a poesia revela, que chegamos ao epicentro deste livro.

Um simples cálculo matemático seria suficiente para o determinar, mas, perdoem-me os matemáticos, ler é muito mais divertido.

Ora bem, se são vinte e sete, o décimo quarto está à mesma distância do primeiro e do último.

Esse poema, o tal epicentro do livro, tem o nome de: “Concerto”; um nome que por si só já nos diz muito. É um poema singular neste volume, marca a diferença relativamente aos outros vinte e seis enformadores da obra. É o único dedicado, neste caso a Silvestre Fonseca e é, também, o único datado, desta feita consta: Vila Viçosa / 09-06-1987.

Para além de nos mencionar o óbvio, mas algo só adquire essa característica porque alguém o disse, ou seja: todo o poema é dedicado a algo ou a alguém e todo o poema nasce ou ganha a forma com que se apresenta ao outro, ao leitor, num determinado lugar e numa determinada data, refere-nos da importância da musicalidade no poema.

E esta musicalidade, que as palavras também constróem, para além da sua fundamental carga racional, desperta no outro, no leitor, o lado emotivo.

Como refere Fernando Pessoa, num texto sobre estética, e passo a citar:

um poema é um produto intelectual, e uma emoção, para ser intelectual, tem, evidentemente, porque não é, de si, intelectual, que existir intelectualmente. Ora a existência intelectual de uma emoção é uma existência na inteligência – isto é, na recordação, única parte da inteligência, propriamente tal, que pode conservar uma emoção. (3)

Fim de citação.

Talvez por isso, digamos assim, a segunda parte do livro se inicie com o poema “Cor-cordis”, o espaço referencial do coração, aqui, pelo menos assim o leio, como espaço onde a memória habita, a tal recordação referida por Fernando Pessoa. E este reavivar da memória é bem patente pelo engenhoso processo anafórico presente neste poema.

Aliás, a importância da memória na construção da obra é sublinhada pelo poeta quando este afirma no poema: “As águas”, o seguinte:

Em vão nada se faz, nada se queima.
Projectam-se partos na memória.


Em jeito de resumo, diria que “27 poemas” é uma viagem. Uma viagem com amor e morte, que são os grandes temas da poesia, mas onde a própria poesia é, de facto, o tema. Essa enigmática figura que nos surge amiúde referida sob o pronome “você”. Mas toda esta viagem é-nos servida com diversas referências culturais e com o registo crítico e irónico que, quase direi, são a imagem de marca do autor.

Para concluir, porque o poeta não permitiu ao amante viver até ao fim do filme, deixando essa revelação exactamente no dístico derradeiro, afirmando a sua morte na coxia, permitam-me que descubra um porto. Por isso, deixo-vos um poema, um poema que tem como título um espaço bem concreto: “Porto 1”:

Um dia, a palavra fez-se carne.
Ou sucedeu justamente o contrário?

Obrigado


(1) LOURENÇO, Eduardo – “O poeta na cidade, hoje”, in Jornal de Letras, de 24 de Setembro de 2008, pág. 39

(2) Edium Editores, in http://ediumeditores.wordpress.com/proximos-lancamentos/ (último acesso a 2008.12.15)
(3) PESSOA, Fernando – Obras Completas III, RBA, 2006, pág. 199

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

[no livro]

no livro
dos sinais

repousa
o mestre

dorme
rente
à pedra
por esculpir

o teu olhar

cinzel
em movimento
circular

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

[no limite]

no limite
o cântico expresso
na extrema luminosidade
do silêncio

aves que promovem
nos beirais da luz
a candura do poema

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

[no limite]

no limite

existirá
um só
instante

um suspiro
preso

uma breve
incandescência

um esboço
de um começo

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

[no íntimo]

no íntimo

o poema
é riacho

correndo
buscando

um corpo

caudal
imenso

o saber
do sal

domingo, 14 de dezembro de 2008

[no início]

no início

somente
o gesto

hábil
construtor
de silhuetas

formas
que se formam
imensas
intensas

que na argila
primordial
se elevam

para teu espanto
e encantamento

sábado, 13 de dezembro de 2008

[no êmbolo]

no êmbolo
inicial

se esculpe
o corpo

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

[No despertar da noite, o silêncio]

No despertar da noite, o silêncio
percorre fundo os sentidos,
acorda-os,
enquanto aguardo que um fugidio
pássaro
passe rente ao olhar.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

[no cume]

no cume
do monte

o regresso
se delineia

ténue
e perecível

como uma folha
que teima
em cair

ou a esvoaçar
no regaço
do vento

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Prefácio - "O áspero hálito do amanhã" - Alberto Pereira (Edium Editores, 2008)

"O áspero hálito do amanhã"
Alberto Pereira
Edium Editores, 2008


Nota breve


Este “O áspero hálito do amanhã”, que tem agora entre mãos, apresenta-se estruturado sob três ciclos autónomos: “Dói-me a utopia”, “Arquipélago da loucura” e “Mordem pincéis nas palavras”.

Mas esta aparência autónoma é exactamente isso: meramente aparente. É uma ilusão elaborada como hipótese de caminho, de uma via a seguir no processo criativo. Uma demanda em que o criador se veste como usufruidor da criação artística para, posteriormente, proceder à recriação: erguer dentro de um corpo um corpo outro.

Talvez por isso Alberto Pereira tenha escolhido, como epígrafe a este seu volume, um dístico de Pedro Sena-Lino onde este menciona:

Não somos feitos de pele,
somos feitos de feridas.


algo que nos abre o corpo, que nos incita ao doloroso processo da indagação. Essa dor presente logo no título do primeiro movimento: “Dói-me a utopia”.

Mas que dor é esta que a ferida em nós desperta?, é, na minha leitura, a dor essencial vista como purificadora da oficina para que o processo criativo se possa iniciar.

Não sei como dizer-me que és um hemisfério de desejo
afogado na nudez da memória

Pelo que a ferida de que somos feitos radica no centro de nós, a nossa própria memória, espaço privilegiado para a edificação da obra sentida como “hemisfério de desejo”.

No entanto, não basta preparar o espaço e deter a consciência da possibilidade do erigir em obra o que em si, “na nudez da memória”, se intui existir. Há portanto que possuir os instrumentos e a estes atribuir as funções necessárias para dar continuidade ao processo criativo.

Surge-nos então o “Arquipélago da loucura”, conjunto de corpos, como a própria palavra arquipélago indicia, cada um com as suas especificidades, mas que formam um todo.

Mas este é um todo em mutação, onde “a abrupta harmonia na quietude do imperceptível”, que se descobre quando “O tempo acende o sono dos sorrisos e a cada dia que passa nascem ilhas”, novos artefactos porque novas são as necessidades para o desvelar da obra, é um arquipélago que cresce a cada passo sob o olhar atónito do criador.

Há a oficina e os instrumentos e a obra surge no derradeiro movimento: “Mordem pincéis nas palavras”. O que aí leio é um contínuo diálogo, quase intertextual com os mais diversos quadros, imagens que foram reavivadas, resgatadas à memória.

Aí Alberto Pereira lança mão ao que elaborou anteriormente para nos trazer uma partilha, não de meras impressões, mas, tal como mencionei, do que é fruto de um intenso diálogo com o objecto de arte, o que desta existia em si e do seu próprio contexto.

Um criador, que assume a função da fruição, do outro em si, para erguer, recriar e nos brindar com este “Áspero hálito do amanhã”.



Coimbra, 25 de Outubro de 2008

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

2008-12-06 – Auditório do Campo Grande, Lisboa - Apresentação de “Arquitectura de um fragmento”, de Betty Branco Martins (Edium Editores, 2008)

Antes de mais, embora sabendo que me vou novamente repetir, mas há repetições que nunca são em demasia, agradeço a vossa presença neste sábado de inverno, sábado de um fim de semana prolongado, ainda por cima com o natal já ao virar da esquina.

Esta vossa opção é para quem escreve algo que significa muito. Quem escreve dá-se em cada caractere, mas só se pode dar quando há quem receba. Daí o meu muito obrigado.

Ora bem. Quando abri o ficheiro deste “Arquitectura de um fragmento”, antes de tudo, o que pensei foi: “coitado do paginador, vai ver-se grego para o compor”.

No entanto, isso é um problema que ele teria de resolver. Não era um problema meu. Como tinha e continuo a ter confiança na decisão dos meus pares que constituem o que nós chamamos de painel de autores Edium, que analisam e emitem o seu parecer sobre as obras que esta edita, atrevi-me a ler, isto antes de comunicar à autora a decisão tomada.

Devo-vos dizer aquela frase feita: primeiro estranha-se, depois entranha-se. Este livro de Betty Branco Martins é, na minha opinião, uma das mais interessantes obras de poesia que a Edium editou no decurso deste ano de dois mil e oito.

Naturalmente que esta minha opinião é exactamente isso: é minha. Mas sendo minha teoricamente nada teria a ver com o impacto inicial causado pela componente visual com que a poetisa espraia o seu texto pelo tradicional branco da página, antes seria o reflexo do conteúdo com que nos incita à leitura e, sobretudo, à reflexão.

Mas não é bem o caso. Esta forma de construir o seu registo, este corpo desenhado para cada poema, dá-nos uma dimensão diversa, uma espécie de guia, de mapa, talvez um moderno g.p.s. para uma nova forma de respiração do verso.

A sua mensagem alia-se portanto a uma cadência interna, não por uma opção silábica, mas por uma estrutura gráfica que leva o leitor a descobrir um ritmo melódico deveras curioso.

Mas que arquitectura e que fragmento, sobretudo este último, dado ser indeterminado. É um fragmento, não o fragmento.

Por definição, arquitectura é a arte de levantar construções de toda a espécie. Por seu turno, fragmento é cada uma – novamente o indeterminado – é cada uma das partes em que se separou um objecto que rompeu ou partiu.

Mas fragmento é parte de um todo, melhor: é a memória desse todo. A prova inequívoca da passada existência de um todo.

Talvez por isso a poetisa procure para a elaboração desta arquitectura de um fragmento um registo intertextual. Dou-vos dois exemplos presentes nos poemas sugestivamente intitulados “O que querem os deuses” e “O ____ Deus _______ das pequenas coisas”.

No primeiro, Betty Branco Martins escreve:

"tens uma faca nos dentes"

No segundo, é o próprio título: “O ____ Deus _______ das pequenas coisas”.

No primeiro exemplo, sinto a alusão a António José Forte que em mil novecentos e oitenta e três publica um livro sob o título: “uma faca entre os dentes” e, no segundo, a presença de Arundhati Roy que no ano de mil novecentos e noventa e sete recebe o Booker Prize exactamente com uma obra que, na sua versão portuguesa, se intitula “o deus das pequenas coisas”.

Com isto, naturalmente segundo a minha leitura, pretende Betty Branco Martins dar-nos a sugestão de quão preciosa é a nossa memória, desta feita aquela que se ergue através da cultura.

Mas a poetisa vai mais longe, não se resume à cultura nada na literatura, antes viaja para o desvelar deste fragmento por outras artes:

Pela música, por exemplo, leia-se no poema “Palhaço” a referência a:

“[Quasi una fantasía]_Beethoven

ou pela pintura, como se pode ler no poema: “Instantes __________ d’alma”:

“_____________________________________________________ ouvia
flores __________ primavera. no nascimento de Vénus feito por Botticelli


São de facto referências, marcos geodésicos para o implementar de todo o projecto de arquitectura. Betty Branco Martins desafia-nos, já dentro do próprio corpo poético, à recolha de cada um destes fragmentos para o decifrar do fragmento inicial.

Mas a poetisa não resume a sua construção futura à memória, isto porque, tal como escreve no poema “[IN]sentidos___na sede”,

“_____o caminho para o poço
não significa
o fim da nossa sede


Há portanto que desbravar os próprios mistérios da arte, neste caso, da escrita. Os artefactos, as regras com que se tornaram possíveis não só o recuperar do tempo, mas o edificar do tempo presente e futuro.

A escrita, a arte, torna-se tema. Leia-se, como exemplo, no poema: “Instantes __________ d’alma”, o seguinte:

numa contemplação do artista __ contínua da natureza __ pois é impossível para ele reproduzir com a mão a partir do natural ___ se não forjou primeiro na imaginação ___ e para fazê-lo precisa estar muito atento ___ pois os movimentos da alma só se manifestam por instantes ___ muito breves

Há necessidade para o erguer da obra de possuir mecanismos que sejam capazes de captar esses instantes, esses muito breves instantes. É essa a demanda que podemos vislumbrar em diversos momentos neste “Arquitectura de um fragmento”.

Mas este livro cativou-me sobretudo por um motivo. A arte não está dissociada da vida, muito antes pelo contrário. Ela é o reflexo da vida. E sendo-o, o que faz arte não pode, nem deve, como se costuma dizer, assobiar para o lado, fingir que não vê o que o rodeia.

Betty Branco Martins faz, também, da sua poesia uma arma contra o silêncio e a indiferença. Leia-se o poema “A ___ única ___ testemunha” ou “A ___ terra ___ às avessas”. São poemas com imagens fortes, poderosas a que ninguém pode ficar indiferente. Do segundo, retirei esta quadra que agora vos leio.

O sol ficou prisioneiro
Dalguns ___ que disseram ser seus compradores
A chuva em cestos de verga ___ era o seu dinheiro
Leveza dos sonhos ___ mortos pelos senhores


Ou do poema “estão vazias __ vazias”, este verso:

Povo de bolsos vazios. d'onde roubaram tudo __ até o cotão

Arquitectura de um fragmento” é de facto um livro que vale bem a pena decifrar.

Muito obrigado

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

[No centro das sombras, a vida]

No centro das sombras, a vida
percorre os meandros da morte.
Talvez como o olhar que procura
refúgio em partos de espanto.
Ou uma ave que arrisca seu voo
por sobre os canos da espingarda.

domingo, 7 de dezembro de 2008

[no casulo]

no casulo
espera

que o vento
te toque
na pele

e abre
amplo
o olhar

para que sintas
da luz
o terno
abraço

de súbito
aprende
célere
a arte
secreta
da respiração

indaga
as asas
e voa

voa
para onde
o desejo
te indicar

sábado, 6 de dezembro de 2008

[Neste cinzeiro, deixo os restos do]

Neste cinzeiro, deixo os restos do
tempo. Talvez espera, esperança ou
somente esta memória de estar
aqui sentado à mesa do poema.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

[Nasce rente ao desejo. Asa o corpo]

Nasce rente ao desejo. Asa o corpo.
A viagem rumo a uma
luz eterna. Enceta
a demanda. Aprende
o ofício
da respiração.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

[nasce]

nasce
o poema

renasce
a palavra

desperta
em sentidos

no ventre
do teu sentido

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

[Nas trovas que canta o vento]

Nas trovas que canta o vento,
há uma voz habitada
de ternura e sentimento;
de poente e de alvorada.

Há uma voz feita cor,
aguarela de sentidos,
onde loucos por amor
andam os sonhos perdidos.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

[Nas ondas do mar de Vigo]

Nas ondas do mar de Vigo,
vi Martim Codax cantar
no corpo da barca, amigo,
que baila na voz do mar.

Eu, em Vigo, vi Martim
Codax olhando o mar,
olhando este mar sem fim,
com vontade de embarcar.

E, na rede desse olhar,
vi o corpo da Fortuna:
uma sereia a cantar
no vento que a vela enfuna.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

[não quero bilhete. não quero]

não quero bilhete. não quero
bagagem. quero o vento que
desliza célere dentro de
mim. viajar, não é descolar
o corpo pelo espaço e o tempo,
é estar onde o sonho deseja.