domingo, 30 de novembro de 2008

[Não há soneto como o que em primeiro]

Não há soneto como o que em primeiro
escreves. A palavra bem medida.
O verso generoso. Onde até a vida
rima com tudo. É nobre, audaz guerreiro.

Paladino de justa causa. Obreiro
de poesia à flor da pele sentida.
Doce sílaba alada, enternecida
pelo canto de Sirene qual barqueiro

que enlaça o seu destino ao coração.
As palavras são virgens com o cio
sedentas navegantes deste rio.

Meu soneto, o primeiro, que emoção
transpirava de cada verso erguido
como cometa errante e ensandecido.

sábado, 29 de novembro de 2008

[nado]

nado
o gesto

a obra
de dédalo

o fruto
ergue-se

e lança
seu olhar

rumo
ao sol

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

[na vida]

na vida
há um instante
de eternidade

um momento
de paixão

um corpo
de outro corpo
se desprende

se liberta
e ganha asas
se desejar

arriscar

o voo

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

[na queda]

na queda
da máscara
se desenlaça
a noite

no imenso
sonho
se revela
a face

o rosto
puro
antes oculto

agora
redescoberto

único
e verdadeiro

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

[Na navegação estelar]

Na navegação estelar
o tegumento do sonho
para que ases a memória
do futuro.

terça-feira, 25 de novembro de 2008

[na face das folhas]

na face das folhas
há um verso
a decifrar
e que descreve
a queda outonal

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

[na esfera do tempo]

na esfera do tempo,
o último cálice.
breve instante onde ausente
descubro a memória
da partida

domingo, 23 de novembro de 2008

[na epiderme]

na epiderme
da memória

a ferida

a cicatriz
desenhada
pela mão
do sol poente

sábado, 22 de novembro de 2008

[na ardência]

na ardência
do olhar

reside
o poema

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

[migra]

migra

há uma outra
paisagem

para lá
do olhar

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

[Meu amor, que canção te canto agora]

Meu amor, que canção te canto agora,
que partiste no dorso da palavra,
amor, sem poesia desta lavra
que fizemos por nossa vida. Embora

foste sem o poema por esta hora
tão longa, eterna, infinda. Que reabra
a esperança, o retorno, o poema. Abra
o sentir, o momento em que a mão aflora

o ventre da metáfora e pressente
o corpo desse verso por nascer.
Mas que poema, amor, que poesia

há sem que teu olhar em voo rente
reencontre a beleza de reter
um verso em nossas mãos somente um dia.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

[mãe]

mãe
adormeci no teu beijo
que o pai natal da infância
na peúga me deixou

terça-feira, 18 de novembro de 2008

[longe de tudo, como uma ave em fuga]

longe de tudo, como uma ave em fuga,
o corpo eterno
liberto da matéria, do peso
da matéria.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

[longe]

longe
a voz

teu corpo
evola
no infinito

domingo, 16 de novembro de 2008

Prefácio - "A metáfora das asas", Manuel C. Amor (Edium Editores, 2008)


"A metáfora das asas"
Manuel C. Amor
(Edium Editores, 2008)

Nota breve

Como escrever um prefácio a um livro quando o próprio poeta, embora sob pseudónimo, insere um poema sugestivamente intitulado: “Como se fosse um prefácio”; e que decididamente nos desafia para o desbravar da obra?

Não sei qual é a resposta, mas o que sei é do privilégio de escutar o coração da terra no coração de cada poema.

Talvez por esse motivo, ao ler este “A metáfora das asas”, senti que observei o poeta na sua condição de exilado, longe das coisas mais simples, mas que são o cerne da sua matriz, e que necessariamente se perpetuaram em si, esboçando o desenho de cada passo conquistado.

Manuel C. Amor olha para o interior de si próprio, explorando todos os possíveis compartimentos da sua memória, em busca de sons, cheiros, paisagens, afectos, mas sobretudo daquela música secreta que lhe invade a alma.

Porque o poeta vive o seu tempo e as suas circunstâncias, abraça essa matriz como quem sabe que, se o não fizer, o legado aí gerado se perderá.

Radica aí esta sua urgência, esta necessidade crescente, que se sente a cada dobra do poema, de moldar a palavra como arma.

Gritar para que seja ouvido, escrever como se escrevendo, para além do desejo de passar a sua mensagem, efectuasse a sua catarse, conferindo desta forma à sua escrita toda uma carga emotiva só ao alcance de quem viveu com intensidade o que converte em poesia.

Esta metáfora das asas, com um artigo definido a antecedê-la, é como uma impossível escultura de uma lágrima, de uma lágrima pura, que teima em cair, deslumbrada pelo eclodir da dor, mas também, ou talvez sobretudo, pela esperança que a tudo resiste.

Em suma: uma poética de combate por valores, causas a que o poeta não pode, nem quer, por respeito a si próprio, ser indiferente.

Cabe agora ao leitor decifrar esta metáfora, este sentido outro da palavra, das palavras, em suma: ler esta metáfora pelo seu próprio respirar.


Xavier Zarco
Coimbra, 3 de Outubro de 2008




















sábado, 15 de novembro de 2008

2008.11.08 – Casa de Angola (Lisboa) - Apresentação de “A metáfora das asas”, de Manuel C. Amor (Edium Editores)

Muito boa noite. Muito obrigado pela vossa presença. Um agradecimento também para a Casa de Angola por nos ter aberto as suas portas para a apresentação deste livro, o primeiro, e estou convicto, de muitos outros de Manuel C. Amor.

Uma palavra de apreço à Edium Editores por, mais uma vez, editar. Bem sei que a função de uma editora é a edição, mas a edição de poesia é sempre um acto de louvar.

Não só pelo risco, essência de toda e qualquer actividade económica, mas pelo facto de enriquecer esta Língua que une: da Galiza a Timor; de Moçambique a Cabo Verde; da Guiné ao Brasil; de São Tomé e Príncipe a Angola e Portugal.

E hoje celebra-se exactamente isto, no espaço apropriado, na Casa de Angola, numa cidade de Portugal, neste caso, Lisboa, a apresentação de uma obra de um poeta que cultiva, e cuida, estas suas duas matrizes: a angolana e a portuguesa; com que contamina o seu discurso poético.

Conheço Manuel C. Amor há um bom par de anos. Creio que foi em Leiria a primeira vez que falamos olhos nos olhos, aquando da apresentação de um dos números da Antologia Escritas.

Depois, Coimbra, num cantinho da mesa, da extensa mesa num encontro de poetas, melhor: de apreciadores de poesia; que aí, na minha cidade, aconteceu.

Aí fortaleceu-se algo que, para mim, é bastante importante: a consciência do Manuel C. Amor me fazer um favor, esse favor muito especial, de ser meu amigo.

E digo-o porque os amigos dizem o que pensam. Não ficam naquela zona estranha das meias tintas. Não há espaço para rodeios. O concordar e o não concordar fazem parte da vida.

No fundo, só através do conhecimento do sol se pode apreciar plenamente a sombra e vice-versa.

E é essa a verdadeira essência deste livro que hoje é aqui apresentado. Alguém que mergulha fundo na sua memória e resgata o que considera relevante para o erguer em obra de uma outra memória, uma memória futura.

Mas não se espere encontrar neste volume um acto revivalista ou saudosista. Antes um olhar atento que denuncia os erros de ontem e que hoje, nos nossos dias, se repetem.

O acto poético de Manuel C. Amor é, por isso, uma arma. Mas é uma arma que radica, como afirma o poeta,

Na profundidade das contradições

fim de citação. Nesse lugar onde se bebia, e passo a citar,

o sentido das palavras camufladas.

Aliás, ler poesia é um desafio maior. Não há outro género onde a palavra adquira mais valor do que este. É através da palavra poética, prenhe de música e significado, que se desperta no leitor, em simultâneo, tanto o lado sensível como o lado racional. E é capaz de acordar em nós outras fórmulas para a interpretação do mundo.

Naturalmente que me refiro à boa poesia.

Coloco a obra de Manuel C. Amor, não só este livro, mas os múltiplos esparsos que tive a fortuna de ler, neste patamar.

De facto, através do seu registro poético, temos acesso, o nosso próprio acesso a uma mundivivência plena de pulsação, mas de uma pulsação não artificialmente criada, mas verdadeira, plena de autenticidade.

Logo no título:
“A metáfora das asas” há esses indícios. Que asas são estas sob a condição de metáfora, não de uma qualquer metáfora, mas de a metáfora?

Poderemos atribuir o valor de liberdade a estas asas, nada mais normal. Aliás, a palavra liberdade surge logo no poema “Como se fosse um prefácio”.

No entanto, repare-se que Manuel C. Amor escreve, embora sob pseudónimo, que

A liberdade
é um fardo muito pesado


Ou seja: embora se possa ler este tomo sob esse signo, à luz e contraluz desse signo, estas asas, para mim, representam mais Hermes do que propriamente Espártaco.

São mais mensagem, transmissão de testemunho, do que liberdade, quebrar dos grilhões.

E porque referi duas personagens da cultura clássica europeia, talvez o que melhor se enquadra nesta minha leitura de
“A metáfora das asas” não é Dédalo, embora este saiba do perder de algo precioso, o seu próprio filho: Ícaro; pelo que se tornaria urgente o passar da mensagem do erro, sequer por ter cumprido o seu objectivo, mas Sísifo, a figura de Sísifo.

Pelo menos este leitor, logo neste terceto o descobre. Passo a citar:

Há um gozo insano
no contestar
o que se perdeu outrora


ou noutro excerto pode ler-se o seguinte:

Falem-me do canto de rouxinóis
eu falarei de um outro canto

aquele que emerge do fundo
das almas angustiadas

ou, porque a sabedoria popular diz que não há duas sem três, escute-se o seguinte:

regresso à memória da matriz
para encher os olhos de sol.

Mas o certo, naturalmente que o certo aqui é o meu certo, é a inversão da leitura do mito de Sísifo efectuada por Albert Camus. Não é nesta obra o tempo de reflexão, o tempo de contemplação, o período que medeia o chegar ao topo e o regresso ao vale.

Antes é o próprio esforço de levar a pedra, a mensagem, até ao cume do monte. Torná-la alcançável ao homem, a todo e qualquer homem.

Mais do que isso: é o próprio instante da pedra, da mensagem, no cume do monte. É o abrir do livro, verdadeiro eclodir do poema.

Este é o instante mágico em que o ofício do poeta se expõe para a possibilidade do ofício do leitor. Ambos se municiaram dos mesmos artefactos: as palavras. Cada um com a sua própria forma de delas tirar proveito. Ambos as sentem como suas nesse instante.

E o jogo de tese, antítese e síntese torna-se o verdadeiro mecanismo depurador da mensagem, a metáfora que eu, leitor, leio na palavra asas.

Muito obrigado.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

[Lego-te esta chave]

Lego-te esta chave.
Esta pedra de roseta
de Champollion.

A decifração
do antigo alfabeto do mundo
para que sintas o pulsar
do tempo.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

[lega]

lega

o derradeiro
gesto

a um mor
silêncio

cada palavra
dita

teria
o peso
do tempo

somente
parte

uma barca
espera

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

[Já nada sei. O que sou, não o]

Já nada sei. O que sou, não o
sou por mais de um segundo.
Meu gesto progride à velocidade
dos espelhos, ao ritmo do olhar.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

[Junto ao poema]

Junto ao poema
a chave
sob o tapete de palavras
inauguradas
rente ao teu olhar.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

[Irrompe do silêncio]

Irrompe do silêncio
um cântico de cítara.
A breve espuma
de uma memória que se esvai.
Repara: no travo do mar
não há sal,
só absinto e retorno.

domingo, 9 de novembro de 2008

[invade]

invade
a aorta da memória

o silêncio

esculpindo o vazio
na tez
de cada instante

sábado, 8 de novembro de 2008

[indaga]

indaga
a penumbra

suas vestes
traja

e sente
em tuas mãos

o supremo
parto

das estrelas

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

[incendiada]

incendiada

a palavra
é um mundo

mãe
que se abre

ao parto
dos sentidos

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

[imagina]

imagina

há nas tuas mãos
argila por moldar

uma forma
que enseja

brotar

sob o teu olhar
criador

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

[imagina]

imagina

e vai
para além
dos sentidos

mergulha
fundo
dentro da alma

regressa
ao útero
ao cosmos

em ti
reside
a linguagem
dual

música
e matemática

sentir
e pensar

a arte
de comunicar
com o universo

terça-feira, 4 de novembro de 2008

[iludem-se]

iludem-se
as mãos

na ilusão
malabar

o movimento

a elipse

não é mais
que o teu destino

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

[hoje abrirei uma janela]

hoje abrirei uma janela
um pouco a medo

a luz extrema poderá
entrar

e cegar
as palavras

todas as palavras

que o sonho
e a vontade geraram

domingo, 2 de novembro de 2008

[havia]

havia
um gesto
a encetar

indagar
o toque
na matéria
disforme

sentir
o pulsar
da vida

na face
da terra

onde o poema
germina

sábado, 1 de novembro de 2008

[Habito o poema. A música]

Habito o poema. A música
do poema. A palavra brilha fértil
seara cintilante
que se descobre em tua alma.