sábado, 15 de novembro de 2008

2008.11.08 – Casa de Angola (Lisboa) - Apresentação de “A metáfora das asas”, de Manuel C. Amor (Edium Editores)

Muito boa noite. Muito obrigado pela vossa presença. Um agradecimento também para a Casa de Angola por nos ter aberto as suas portas para a apresentação deste livro, o primeiro, e estou convicto, de muitos outros de Manuel C. Amor.

Uma palavra de apreço à Edium Editores por, mais uma vez, editar. Bem sei que a função de uma editora é a edição, mas a edição de poesia é sempre um acto de louvar.

Não só pelo risco, essência de toda e qualquer actividade económica, mas pelo facto de enriquecer esta Língua que une: da Galiza a Timor; de Moçambique a Cabo Verde; da Guiné ao Brasil; de São Tomé e Príncipe a Angola e Portugal.

E hoje celebra-se exactamente isto, no espaço apropriado, na Casa de Angola, numa cidade de Portugal, neste caso, Lisboa, a apresentação de uma obra de um poeta que cultiva, e cuida, estas suas duas matrizes: a angolana e a portuguesa; com que contamina o seu discurso poético.

Conheço Manuel C. Amor há um bom par de anos. Creio que foi em Leiria a primeira vez que falamos olhos nos olhos, aquando da apresentação de um dos números da Antologia Escritas.

Depois, Coimbra, num cantinho da mesa, da extensa mesa num encontro de poetas, melhor: de apreciadores de poesia; que aí, na minha cidade, aconteceu.

Aí fortaleceu-se algo que, para mim, é bastante importante: a consciência do Manuel C. Amor me fazer um favor, esse favor muito especial, de ser meu amigo.

E digo-o porque os amigos dizem o que pensam. Não ficam naquela zona estranha das meias tintas. Não há espaço para rodeios. O concordar e o não concordar fazem parte da vida.

No fundo, só através do conhecimento do sol se pode apreciar plenamente a sombra e vice-versa.

E é essa a verdadeira essência deste livro que hoje é aqui apresentado. Alguém que mergulha fundo na sua memória e resgata o que considera relevante para o erguer em obra de uma outra memória, uma memória futura.

Mas não se espere encontrar neste volume um acto revivalista ou saudosista. Antes um olhar atento que denuncia os erros de ontem e que hoje, nos nossos dias, se repetem.

O acto poético de Manuel C. Amor é, por isso, uma arma. Mas é uma arma que radica, como afirma o poeta,

Na profundidade das contradições

fim de citação. Nesse lugar onde se bebia, e passo a citar,

o sentido das palavras camufladas.

Aliás, ler poesia é um desafio maior. Não há outro género onde a palavra adquira mais valor do que este. É através da palavra poética, prenhe de música e significado, que se desperta no leitor, em simultâneo, tanto o lado sensível como o lado racional. E é capaz de acordar em nós outras fórmulas para a interpretação do mundo.

Naturalmente que me refiro à boa poesia.

Coloco a obra de Manuel C. Amor, não só este livro, mas os múltiplos esparsos que tive a fortuna de ler, neste patamar.

De facto, através do seu registro poético, temos acesso, o nosso próprio acesso a uma mundivivência plena de pulsação, mas de uma pulsação não artificialmente criada, mas verdadeira, plena de autenticidade.

Logo no título:
“A metáfora das asas” há esses indícios. Que asas são estas sob a condição de metáfora, não de uma qualquer metáfora, mas de a metáfora?

Poderemos atribuir o valor de liberdade a estas asas, nada mais normal. Aliás, a palavra liberdade surge logo no poema “Como se fosse um prefácio”.

No entanto, repare-se que Manuel C. Amor escreve, embora sob pseudónimo, que

A liberdade
é um fardo muito pesado


Ou seja: embora se possa ler este tomo sob esse signo, à luz e contraluz desse signo, estas asas, para mim, representam mais Hermes do que propriamente Espártaco.

São mais mensagem, transmissão de testemunho, do que liberdade, quebrar dos grilhões.

E porque referi duas personagens da cultura clássica europeia, talvez o que melhor se enquadra nesta minha leitura de
“A metáfora das asas” não é Dédalo, embora este saiba do perder de algo precioso, o seu próprio filho: Ícaro; pelo que se tornaria urgente o passar da mensagem do erro, sequer por ter cumprido o seu objectivo, mas Sísifo, a figura de Sísifo.

Pelo menos este leitor, logo neste terceto o descobre. Passo a citar:

Há um gozo insano
no contestar
o que se perdeu outrora


ou noutro excerto pode ler-se o seguinte:

Falem-me do canto de rouxinóis
eu falarei de um outro canto

aquele que emerge do fundo
das almas angustiadas

ou, porque a sabedoria popular diz que não há duas sem três, escute-se o seguinte:

regresso à memória da matriz
para encher os olhos de sol.

Mas o certo, naturalmente que o certo aqui é o meu certo, é a inversão da leitura do mito de Sísifo efectuada por Albert Camus. Não é nesta obra o tempo de reflexão, o tempo de contemplação, o período que medeia o chegar ao topo e o regresso ao vale.

Antes é o próprio esforço de levar a pedra, a mensagem, até ao cume do monte. Torná-la alcançável ao homem, a todo e qualquer homem.

Mais do que isso: é o próprio instante da pedra, da mensagem, no cume do monte. É o abrir do livro, verdadeiro eclodir do poema.

Este é o instante mágico em que o ofício do poeta se expõe para a possibilidade do ofício do leitor. Ambos se municiaram dos mesmos artefactos: as palavras. Cada um com a sua própria forma de delas tirar proveito. Ambos as sentem como suas nesse instante.

E o jogo de tese, antítese e síntese torna-se o verdadeiro mecanismo depurador da mensagem, a metáfora que eu, leitor, leio na palavra asas.

Muito obrigado.

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