domingo, 18 de maio de 2008

2008.04.26 - Dramático de Vilar do Paraíso - Vila Nova de Gaia - Apr. "Ascensão do fogo", Jorge Vicente e "Fractura possível", José Gil

A Poesia está em festa, melhor, duplamente em festa. Digo-o pela raridade em podermos assistir, não a um novo autor a apresentar a sua primeira obra a solo, mas a dois autores apresentarem as suas primeiras obras a solo.

É um dia raro. Mais raro porque é mais um risco, um duplo risco, assumido pela Edium Editores, cujo catálogo de Poesia bem merece um olhar mais atento.

Também é verdade que a Poesia não necessita de muito para estar em festa. Basta que haja quem a diga e, sobretudo, quem a escute. Por isso, hoje há celebração da Poesia.

Bem hajam, por isso. Autores, editores, mas sobretudo todos vós, pelo privilégio que nos concedem com a vossa presença.

Muito obrigado por isso.

Conheço ambos os autores presentes: Jorge Vicente e José Gil, não só pelo que escrevem, mas pelo que são, como pessoas, como todos nós, com defeitos e virtudes.

São dois poetas, porque é por estas suas facetas que aqui estou, que se cruzam comigo há já um bom par de anos através desse magnífico, mas também terrível mundo novo que é a Internet.

Jorge Vicente e José Gil têm uma história em comum: espaços e projectos confluentes. Talvez por esse motivo considere um equívoco a designação deste evento. Chamaram-lhe dois poetas quando de facto estamos perante um único rio.

Este rio tem a ver com o facto de Jorge Vicente e José Gil marcarem a sua presença em listas comuns ou em livros. Saliento os projectos antológicos do Grupo Escritas, que já vão no seu número cinco. Os livros “www.3poetasemleiria.pt”, de 2002 ou “A Bic(a)”, de 2005.

Este rio também está ligado ao que está no cerne da acção poética destes dois escritores: a cultura, a vontade que ambos sentem na demanda do conhecimento, a paixão que ambos demonstram na leitura. São por isso um rio de preservação da memória.

E é neste último tópico que as coisas se complicam. Este rio, como todos os rios, tem duas margens, margens que são elaboradas de forma diversa. Aliás, entre Jorge Vicente e José Gil, nada mais há de comum. Se José Gil nos oferece a visão de um cinzel, pela forma como processa o seu labor de esculpir a Poesia, Jorge Vicente traz-nos a delicadeza de um gradim, um utensílio que aprimora o detalhe.

Se ambos trabalham a mesma matéria, a palavra, nesta buscam a sua essência de forma totalmente distinta. São as margens opostas deste rio. Opostas, mas não de costas voltadas. Ambos sabem do quão essencial é a comunicabilidade.

Posto isto, vamos então às minhas leituras, também elas possíveis, destas duas obras: “Ascensão do fogo”, de Jorge Vicente e “Fractura possível”, de José Gil.

E é aqui, tal como se diz na minha terra, quando as coisas se complicam, que a porca torce o rabo. E o motivo de tal complicação advém dos excelentes textos de apoio que ambos estes livros possuem: “Ascensão do fogo”, de Jorge Vicente, com um posfácio de Rui Sousa; e “Fractura possível”, de José Gil, com um prefácio de Jorge Vicente.

Se no caso do livro do José Gil tenho desculpa, no outro não há desculpa possível. E explico: um prefácio deve convidar o leitor para a leitura, um posfácio deve dar uma leitura possível ao leitor. Logo, quem tem de apresentar um livro, deve imitar o Diabo e fugir a sete pés de qualquer posfácio.

O pior é que ambos possuem, o primeiro necessariamente, porque de um prefácio se trata, de uma forma mais ligeira, tópicos essenciais para a compreensão da poética apresentada.

Mas há que apresentar, como tal, sobre “Ascensão do fogo”, cumpre-me dizer que, se tivesse de definir este livro de Jorge Vicente, talvez afirmasse o seguinte: é um volume sobre a observação e posterior depuração sensível do mundo.

Anexaria aqui a voz de um dos meus poetas de referência, o inexplicavelmente esquecido Afonso Duarte porque, a esparsos, neste “Ascensão do fogo”, a sua voz escuto.

Servirá como uma espécie de epígrafe o que Afonso Duarte escreveu no poema “Inscrição”, poema primeiro do seu livro “Cancioneiro das Pedras”. É o seguinte:

Dos vastos horizontes me invocaram,
Noutras formas artísticas imersos,
Revoltos pensamentos que formaram
Todo o amor e pureza dos meus versos.

Eis a súmula, o ponto de partida que está subjacente a este livro do jovem poeta Jorge Vicente para a sua aventura.

Ao observar o mundo, ao colocar-se numa posição, não de mero espectador, mas de alguém que realmente vê, intervém na construção e reconstrução da memória, fazendo desta a essência da sua acção poética que está presente neste excepcional ciclo de vinte e cinco poemas.

Seguindo a ideia de Afonso Duarte, há uma invocação latente no que no olhar se revela, despertando o pensamento revolto porque é daí que o poema se forma em amor e pureza, amor às palavras, pureza porque é intuito de comunicação, de partilha.

A palavra pedra assume nesta obra uma importância superior. É ela, como refere o posfaciador, embora a designe por rocha, e passo a citar: “que constantemente é nomeada nos versos como simbologia do tempo que passa mas deixa marcas”.

O poeta procura a sua linguagem na pedra, no que a pedra simboliza, embora sabendo que a pedra é o que ficou na sua memória. O estilhaço, o fragmento de um determinado lugar numa determinada circunstância temporal.

Há portanto que a trabalhar, que dela retirar o corpo do poema. Como o próprio poeta diz:

a memória verga todas as coisas,
mesmo o silencioso movimento
da não existência


ou, pouco mais à frente:

deixa que a casa se revele
como um véu inacabado


Daí, por este véu inacabado, creio que a pedra é trabalhada com um gradim, o tal utensílio que antes referi, porque há uma busca pelo detalhe, pelo pormenor.

Essa certeza de que a obra é inacabada, mas que mesmo assim se torna urgente a sua execução, deve-se ao sentir, como Jorge Vicente refere:

o caminho faz-se da observação
da memória

Um caminho que é eterno, passa de homem para homem, cada qual decifrando com outro olhar a pedra onde se regista o tempo ou, nas palavras do poeta:

a candeia vibra com o repouso
das estrelas silentes

assinalando a eternidade do caminho

A candeia leio-a como um símbolo da percepção do homem sobre a coisa antes criada e que repousa na pedra. Jorge Vicente é mais um passo, um passo intermédio que sob a luz da candeia do seu tempo desvela a sua visão do mundo, talvez por isso diga:

uma réstia de caminho,
até alcançar o passo dos homens

O certo é que é um caminho, e a transformação desse caminho, sob a luz da candeia deste poeta que vale bem a pena explorar.

Para concluir, talvez a explicação do título resida exactamente nesse processo. Sob o olhar, necessariamente preso a um determinado tempo, e aos ensinamentos que se souberam colher, a pedra revela-se para deflagrar onde deve deflagrar. Isto é, no olhar alheio, no olhar do leitor.

Sobre o livro de José Gil, “Fractura possível”, o que se pode dizer? Um livro de estreia com cento e tal poemas? Um volume que nos é entranho, como se fosse gerado no caos? Uma antologia, no sentido de súmula de uma obra que se espalhou pelo tempo e que agora é ordenada? E este título?, o que significa esta fractura e este possível?

É um engano, um puro engano. O mais desprevenido leitor poderá nele ver o fim de uma etapa e o início de outra. Todos nós sabemos que o que virá, mesmo que muito distinto seja, leva sempre consigo vestígios do passado. Mas, também, não é este o caso.

Sequer é o da dificuldade de acesso à edição, em que o autor aproveita a ocasião para dispor os mais variados marcos para delimitação do seu terreno.

É, de facto, uma possível fractura. Uma solução de continuidade que se revela e oculta, consoante a perspectiva que sobre as suas palavras se detém.

É um livro de qualidade superior, uma demanda de um registo metalinguístico, onde o corpo, e o seu próprio código linguístico, assume predominância. Entre os seus versos poderá o leitor rever-se quando, através do olhar, das mãos, dos mais singelos gestos, se expressa, sem palavras, sem verbalizar quaisquer palavras, para o outro.

Como exemplo, deixem que vos leia o seguinte:

na Arcada escrevemos um café
sem memória
e
nas vielas te beijo

e por esse beijo
azul me perco


É o plano do corpo. Elemento essencial para o encontro do homem com o mundo. Centro nevrálgico para sentir e para racionalizar o mundo. No entanto, também é espaço de sensualidade. O corpo como templo do prazer. Do prazer dos sentidos e da própria escrita. Como diz o poeta:

se o mar acariciar as rosas espero-te
na vírgula mais doce
onde o lápis toca o teu rosto
e penetra os teus lábios

Ou um pouco mais à frente neste mesmo poema, pode ler-se o seguinte:

se o amor for escrito a pincel toca-me
com o teu mamilo que mói
nas ancas da letra sensível


É um livro aberto, no sentido de se propor à descoberta de quem o ousar. Traz-nos a memória do tempo, um rico registo intertextual, como possibilidade de comunicação entre as mais distintas gerações do pensamento. Como, por exemplo, sendo os dois primeiros versos, um título de Mia Couto, escutemos o seguinte:

“um rio chamado tempo
uma casa chamada terra”
uma frescura chamada alegria
e os olhos negros de uma criança
negra

Há nele, inclusive, uma possível teoria explicativa do cientista, homem nado do rigor matemático, sentir a necessidade de expressão através do mundo da filosofia, do mundo das ideias, através das palavras. Como exemplo, este fragmento onde o poeta reflecte sobre os poetas:

os escritores não conseguem já falar de torres de
marfim
desenham a IC 19 como o lugar mais poético e tercena /
barcarena
como uma tosta mística com anjinhos red bull

Este volume, este grosso volume, intitulado “Fractura possível”, é a visão do tempo através do próprio tempo. Fractura, no sentido pleno da ruptura, condição essencial para o devir, no sentido hegeliano do termo. Possível, porque nada é o homem sem passado, sem memória, sem cultura, sem referências. Ouçamos o seguinte:

vou lendo René Char na sala do aeroporto
o avião enche-se de asas, daqui a pouco Paris espera-me

Les Champs-Elisées onde como os pássaros
do Sena plantarei
por ti serapol e alecrim

viajarei em Jacques Brel e Leo Ferré
nas florestas de ébano e de sândalo


Em suma, José Gil traz-nos esse mundo da palavra e do que está para lá da palavra, oferta-nos esse mundo das ideias e essoutro das sensações.

Ao Jorge Vicente e ao José Gil, deixo aqui os votos para que estes vossos livros sejam os primeiros de muitos.

À Edium desejo, mais uma vez, que esta vossa aposta seja verdadeiramente vencedora, o que significa comercialmente válida.

A todos vós, o meu muito obrigado pela vossa presença nesta tarde de sábado.

Obrigado.

1 comentário:

PoesiaMGD disse...

Foi um belo momento esse de ontem!
Um abraço