domingo, 11 de maio de 2008

2008.03.01 - Biblioteca Municipal Florbela Espanca - Matosinhos - Apresentação do livro: “Fui... O que já não sou!...”, Paulo Themudo

Antes de mais, agradeço a vossa presença nesta tarde de sábado. A Poesia necessita de público. Sem este, nada do que se possa dizer, ou fazer, nesta área tão mal tratada da literatura, tem sentido.

Por isso, o meu obrigado.

A vida tem destas coisas, é plena de surpresas. Como em tudo, existem as boas e as más. Ora bem, este livro que hoje vos é aqui apresentado: “Fui... O que já não sou!...”, de Paulo Themudo, em mais uma aventura da Edium Editores no mundo da Poesia, da Poesia em Língua Portuguesa e de novos autores, mas com qualidade, de excelente nível, devo acrescentar, trouxe-me não uma, mas duas boas surpresas:

Em primeiro, o convite do autor para escrever uma nota introdutória à obra.

Depois, o desafio por parte do editor para efectuar a respectiva sessão de apresentação.

A ambos, devo agradecer a confiança ou, num registo mais íntimo, daqueles que só aos espelhos se revelam, a forma como quiseram cuidar da boa cotação do meu ego.

Sobre Paulo Themudo, como homem, pouco ou nada sei. Mas soube um pormenor curioso e importante. Desde já as minhas desculpas para quem, entre os presentes, não se enquadrar naquilo que na minha terra se pode definir como, desculpem a linguagem, um tipo porreiro.

E o Paulo Themudo só o pode ser. Nasceu no mês de outubro do ano de mil novecentos e sessenta e oito. Quem nasceu nesse mês e nesse ano só pode ser boa pessoa. E isto, confesso, nada tem a ver com o facto do apresentador desta obra ter nascido exactamente também nesse mês e ano.

Acreditem que esta apreciação, embora também eu saiba mentir, e há quem diga que muito bem, é mera coincidência.

Posto isto, sei que editou dois livros, sendo pois este o seu terceiro volume. Não conhecendo o autor, como se costuma dizer, olhos nos olhos, resta-me o que sei através da internet, ou seja: a sua Poesia.

Sobre este autor, escrevi o seguinte no meu diário na internet, a trinta e um de outubro de dois mil e sete:

Conheço a Poesia do Paulo Themudo há escasso tempo, o suficiente, ou talvez não, para poder afirmar que estamos perante um caso raro de sensibilidade, de capacidade de nos pintar, talvez contaminado por esta outra sua vertente artística, os sentimentos, as sensações, mas num espaço, num cenário.

As suas palavras desfilam perante nós como se fossem traços, delineando primeiramente o palco, a moldura, a tela onde as diversas sonoridades, matizes vão adquirindo forma cada mais definida.

E há a gestação de um sereno movimento, um leve abrir de asas ou o jogo de luzes que nos desvia o olhar, conduzindo-o por um rumo pré-determinado.

Agora, que o quadro, o poema cessa com a derradeira palavra, resta-nos esta estranha sensação de termos estado lá dentro, naquele espaço, com aquelas sensações que não sendo nossas, as sentimos como tal.

Esta anotação confirma-se.

Vamos pois ao que interessa, a leitura deste volume.

Um livro é como uma casa. Antes de se entrar na casa, há que a descobrir. Existem várias formas para se chegar à casa: o acaso, através de indícios ou, mais comodamente, a exacta referência.

Mas, independentemente da forma de a encontrar, a casa é, existe, assume-se como um dado físico, concreto, com as suas paredes, portas, janelas...

Sob o olhar, a casa revela-se, não só na sua condição material, mas como parte integrante de um lugar, talvez de um arruamento e com o seu próprio número de polícia.

A esta abstracção, poderemos atribuir-lhe o valor de um título. No caso em apreço: “Fui... O que já não sou!”. E este é o nome desta casa.

Utilizo a imagem da casa porque é o espaço referencial, o espaço da emoção, dos afectos, da família, dos amigos, mas, também, é o espaço da solidão e, sobretudo, é o nosso templo, espaço de reflexão, de meditação. No fundo, serve de refúgio, é o nosso canto.

Talvez por isso, diga o poeta, num poema intitulado: “Eu...”, texto com que nos abre a porta desta casa, o seguinte:

agarro o transpirar das janelas, escudos protectores das palavras

Ou seja: o espaço é habitado por palavras. Portanto, não será de estranhar que uma delas seja fulcral na leitura deste poemário. Esta é a palavra criança. Palavra que nos surge na exacta medida, ou seja: a sua repetição corresponde ao fragmento “Fui”, anunciando desta forma o fragmento “O que não sou”.

Em resumo, estando perante um livro composto por trinta e quatro poemas, essa referência deveria ocorrer dezassete vezes e, de facto, assim acontece.

Repito o que escrevi no prefácio:

feito de arte, criação humana

Criança, para além do que intuitivamente nos é apresentado, traz-nos a ideia da esperança, a capacidade do sonho, da criação. Por isso, diz o poeta:

Que eu não sei nada do que sou se não fossem os sonhos

Ou seja, a criança como o princípio, o elemento matricial do homem. No entanto, mesmo quando alude ao sonho, é necessário, urgente reforçar essa presença, e isso acontece no poema intitulado sugestivamente “Escrevo o sonho”, referindo:

Não desisto de ti
Que és nome silencioso
Que madruga e veste
As minhas mãos


E porque o sonho, a criança em acção, se pode única e somente justificar perante o outro, o leitor, pelos actos, pela liberdade, o poeta, no mesmo poema, profere:

Construí um rio de palavras
Para adormecer nas mãos de alguém

Esta é uma importante referência. Chamo pois a atenção a este poema. É, na minha leitura, de suprema relevância para o entendimento deste ciclo poético. No fundo, talvez seja o desvelar da própria essência da sua visão de arte poética: a consciência de que tudo o que se escreve só tem validade a partir do instante em que o leitor se apropria do poema. Das palavras que, numa imagem de serenidade, se recolhem nas mãos do leitor, ou, utilizando as palavras do poeta, nas mãos de alguém. Essa partilha, dá-se porque, e assim diz Paulo Themudo:

Eu fui feito de tudo
Caí, debrucei-me nas ondas do mar

E só no mar é possível exercer a navegação, partir em busca de quem se sabe ou presume existir num qualquer porto, num qualquer cais, talvez mesmo entre escombros, um náufrago que demande a palavra poética.

No entanto, o poeta sabe que o leitor necessita dos artefactos essenciais para que a sua descodificação seja possível, daí afirmar:

A luz maravilha-se com o sabor de algumas palavras
As páginas trémulas libertam-se na voz madura
Esculpo a sala onde me entrego
Pinto as paredes com um sorriso


Esta é a magia da Poesia, a sua capacidade de metamorfose para o ofício de partilha entre o poeta e o leitor. Desta forma, confessa o poeta:

Quase em silêncio entrego o nome
Nas páginas pálidas de papel
Lugar que deu lugar ao sonho

Reparem que o escritor repete a palavra lugar, reforçando desta forma a ideia da transferência quase diria metempsicótica nesse lugar, a casa, onde a criança se assume na plenitude porque, escreve Paulo Themudo,

As palavras são agora, alma, estrada

Há pois que caminhar. Como ensina Antonio Machado:

Caminante, no hay camino,
se hace camino al andar

E o poeta toma como sua essa lição, mencionando:

A estrada é a mesma
Parece que se estendeu

Mas o caminho de um poeta, como antes já insinuei, é feito de palavras, palavras que habitam no coração da casa. Elas são a sua razão de existir. É através delas que pode erguer a sua obra, ou seja: a matriz do objecto que oferece ao leitor. Por esse motivo, a dado momento, menciona:

Os meus olhos já te dizem tanto
As minhas mãos já te entregam tanto
Só preciso das palavras...


Mas não antes, como um pouco mais à frente refere, de transformá-las na sua oficina, porque o labor do poeta reside na configuração de novos sentidos para a matéria que utiliza, como o próprio refere:

Invento no sabor de uma palavra
O significado de começar

Porque é um ciclo em que se regressa sempre ao ponto inicial, à criança, à palavra criança e a toda a carga evocativa que esta palavra possui, dizendo:

Qualquer distante encanto
Faria sentido...

E esse encanto surge, mesmo quando é a ausência das coisas mais simples o quadro onde esse encanto se movimenta.

A criança corre, sorrindo,
A mesa vazia, mas vai sorrindo,
A lareira apagada, mas vai sorrindo,
A chuva molhando, mas vai, dormindo.

Mas o encanto persiste, porque a criança existe e exige, tornando este numa condição essencial, mesmo quando é nada o que se presume. Ele resiste à devastação, à erosão temporal desde que se saiba ou queira descortiná-lo. Nas palavras do poeta, esta é a sua imagem:

Da pequena janela
Surge um braço de luz
O nascer de uma estrela, era noite, aguarela

E a casa vista de fora mesura-se como refúgio

Refúgio é o corpo que dormia

Na casa, o corpo que dorme é o palco do sonho. Abre em si as portas da imaginação do homem. Aí, ele sente-se pleno, consciente do que nesse lugar mágico for capaz de descobrir, de decifrar, fá-lo-á superar-se, mesmo que, ao acordar, questione:

Que silêncio te esconde
A morada perdida

Porque só através de um incessante questionamento sobre todas as coisas, mesmo que provoque angústia a resposta sempre provisória, ele pode avançar, caminhar, embora tendo essa provisória certeza do que foi, do que já não é, mas sabendo sempre que:

Para trás o vazio
Agora, sou vida!

Direi mais: é futuro, capacidade de sonho porque desoculta a criança em si, redescoberta e reconquistada.

Parabéns, Paulo, por este teu livro. Parabéns, Jorge, pela ousadia. De novo, vos agradeço este privilégio.

A todos vós, o meu sincero obrigado e que este livro constitua instantes de uma boa leitura.

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