segunda-feira, 12 de maio de 2008

2008.03.22 – Porto Palácio Hotel – Porto - Apresentação do livro: “Travessia” (Edium Editores, 2008) de José Félix

José Félix, autor do livro que hoje vos chega às mãos, merecia ter aqui outra pessoa, com mais experiência e conhecimento, a fazer esta apresentação. Não é uma questão de modéstia ou de humildade da minha parte. Nem uma nem outra são maleitas de que padeça em excesso. É uma simples, clara e cristalina constatação, dado estarmos perante um dos nomes mais relevantes da Poesia que se escreve em português.

Conheço o José Félix há um bom par de anos. Primeiro, através da Internet, sobretudo a Lista Escritas, que continuo a considerar a melhor das que existem em Língua Portuguesa, da qual José Félix é o moderador. Depois, em Leiria, deita feita na apresentação da Antologia Escritas, projecto de que me orgulho de participar desde o número um e que só existe e se mantém activo porque o José Félix não desarma. É um activista da Poesia puro e duro.

O José Félix representa para mim uma espécie de omnívoro da Poesia porque procura, investiga, estuda o fazer poético. Aliás, nunca se sabe sob que forma se apresenta a sua Poesia. Mas mais importante do que descortinar a vestimenta que o seu poema trará, é saber que se vai ler com gosto o que se nos apresenta após a abertura da mensagem electrónica.

Agora, uma coisa é a leitura de esparsos, outra bem diversa é a leitura de um livro. Este é um objecto, mas transcende a sua condição física. Na Poesia, naquela que de facto conta, é um objecto meditado, pensado ao pormenor. Nasce para ter vida própria, para fazer parte da vida de outro, outro que não é o poeta, o que o gerou.

Posto isto, entremos pois neste universo chamado: “Travessia”. José Félix nasceu em Angola, licenciou-se em História e reside em Portugal. Esta sinopse biográfica, concisa, talvez em demasia, mostrou-se-me deveras importante para o desbravar deste seu: “Travessia”.

Ensina o dicionário que travessia é o “acto ou efeito de atravessar”. Continua afirmando que é “passagem através de uma grande extensão de terra ou mar”. E conclui dizendo que também é: “vento contrário à navegação”.

Nada há de mais correcto. Esta obra, composta por dois ciclos, que interagem entre si, cada um com doze poemas, como doze são os meses subjacentes à epígrafe de Jorge de Sena, dá-nos, no primeiro, a planificação da passagem e, no segundo, a sua impossibilidade, através da adversidade, para simplificar, a acção do vento contrário.

Leio desta forma dado que o que se me apresenta é a condição do exílio, própria de quem sente presente a ausência concreta, porque distante das suas ou de imaginárias raízes.

A melhor imagem que encontro para exemplificar o exílio é a de uma criança no ventre materno. Ao sair, ao ser expulsa desse abrigo, desse porto de abrigo, ao sentir o corte do cordão umbilical, continua em si, radicalmente gravado o vínculo que a acompanhará para sempre. Este é, no fundo, o plano dos afectos, a consciência do exilado.

E é por esse motivo, na minha leitura, que o poeta escolhe, e bem, a epígrafe de Jorge de Sena, onde no ciclo das estações, na observação de uma espécie de eterno retorno, “só o homem morre de não ser quem era”.

Daí a necessidade da planificação cuidada que o isomorfismo dos poemas do primeiro ciclo bem evidencia. Nessa fase, o poeta recolhe as palavras essenciais para a elaboração do seu ritual, mas tendo plena consciência de que o exílio, ou a sensação deste, é permanente, o que o leva a afirmar, logo na abertura:

há uma dor peninsular
nas arestas das casas, nas fissuras
e na palavra memória (...).

E tanto assim é que recorre à ideia de península que vai sendo trabalhada ao longo deste ciclo, o primeiro, intitulado exactamente: “Travessia”. Alguns exemplos, no segundo poema: “nas margens da península deserta”, no quarto: “a península coberta”, entre outros.

Mas chamo a atenção ao oitavo poema:

(...) a dor da ilha
procura uma passagem, o tal istmo (...).

Apesar de tudo, o poeta compromete-se a prosseguir no seu intuito de regressar, porque

(...) o tal istmo
que a linguagem tem através da escrita,

onde se vê o voo das garças brancas
arquitectando as dunas da península.

Voltando ao meu fiel conselheiro, o dicionário, este recorda-me que península, palavra fundamental pela imagem que em nós desperta, como não poderia deixar de ser, se repete ao longo deste volume por doze vezes, aparece definida como “terra emersa que sobressai de um continente ou de uma ilha, a constituir uma saliência bem individualizada, ligada apenas ao conjunto de que faz parte por uma estreita faixa denominada istmo, circundada, assim, quase totalmente por mar.”

No poema a que chamei a atenção, o oitavo, eis que me surge, de novo, a imagem da criança na palavra ilha, desprovida de um vínculo real, palpável com o seu espaço inicial. Agora é homem e afirma-se como herdeiro de um passado, repleto de outras paisagens, sonoridades, aromas, palavras. Todo esse manancial, do qual não se pretende despojar, dá-lhe a argamassa essencial para a sua poética, para a elaboração do seu plano de acção, de regresso, de saída da sua condição de exilado.

um gesto no cabelo vem de longe.
traz o sabor silvestre das amoras,
os caminhos estreitos onde as mãos

entrelaçadas ficam lendo as margens
adolescentes, e na cor da língua,
os frutos rubros que a manhã aquece.

aduelas velhas prendem o jardim
nos olhos do menino que persegue
o voo da gaivota na península

e este décimo primeiro poema termina desta forma:

do vento surge a cinza do princípio

e o derradeiro poema deste primeiro ciclo começa com:

eu sei que tens a dor à tua espera.

E termina:

(...) esperas, impossível, a palavra,
a que germina no coito de um búzio,
e sopra sob a pele da noite nua.


Recordo, travessia também significa “vento contrário à navegação”.

Como escreveu Fernando Pessoa: “o homem sonha, a obra nasce”. E se o poeta elaborou o seu plano, reuniu os seus artefactos, a sua matéria plena de sons e palavras, só lhe resta o cumprimento. Eis que surge o segundo ciclo intitulado: “o país das águas”.

País, pátria, útero, ponto de partida radicalmente das águas. E o poeta vai ao encontro do seu desígnio, da sua demanda íntima através do ofício da escrita:

promontório aberto é a fuga
para o país das águas.
a península é a lembrança rasteira
duma carícia de afectos

que atravessa o corpo na idade da areia.

Anuncia neste mesmo poema, que abre o segundo ciclo, que:

há sorrisos na passagem das aves

É a utilização do instrumento da memória. Um instrumento difícil da oficina poética, que tanto nos traz a recordação do que desejamos como o seu reverso, mas cujo manuseamento se torna urgente e necessário. Como menciona o próprio poeta:

há um rio no país das águas.
nas margens, o meu pai
dá-me a explicação dos pássaros.
(...)
fico a saber que há sempre um começo e um fim
(...)
e o meu pai, a substância e o espelho.
eu tenho um deus comigo e eu não sei.


Regressando à memória, desta feita à memória cultural, completemos pois a citação de Fernando Pessoa: “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”.

Ao empreender esta jornada íntima, no cerne de si próprio, através dos escombros, vai-se encontrando cada vez mais próximo do ponto inicial do seu próprio ciclo:

a seiva da pronúncia no limbo
da semente regenerada
navegam sons, antigos,
da geografia adolescente

ou

no abraço das águas, a regeneração do corpo

no entanto, antes de prosseguir, há que regressar à palavra península, fulcral neste poemário, que surge transfigurada neste segundo ciclo, aqui, n’ “o país das águas”, é, como já referi, “lembrança rasteira” para se tornar “península perdida”, expressão inserta no quarto e no sexto poema.

O poeta sabe que o regresso não será mais do que uma quimera e que continuará cativo à sua condição de exilado, dizendo, inclusive, no sétimo poema deste segundo ciclo o seguinte:

entro na água como saí do ventre
da minha mãe, imponderável, suspenso
no líquido primordial


um pouco mais à frente, no mesmo poema, continua:

a remissão da viagem esconde
o rosto nas mãos de sangue do cordeiro degolado
persiste a culpa da promessa, e uma
casa não é uma casa
na fonte do desejo com corpos apodrecidos

dentro dela.

Agora, revendo a sua história, sabe que é este o tempo da construção. O tempo certo da sementeira. O ritmo redescoberto das estações. E o poeta observa-o, compreende-o. Reconhece os traços que se repetem ano após ano, no desvelar das estações. Mas sabe que é um mero espectador que tenta decifrar o perpétuo movimento com palavras e é pois nas palavras que radicará o seu refúgio, o seu abrigo, o seu ventre inicial:

e o meu corpo está aonde vai a água
o meu corpo está no vento
no ventre da casa conquistada à palavra
rude e simples e grávida

e é nas palavras, e por palavras, que ergue a sua nova dimensão, aquele que quis e que soube cruzar a distância demandando a raiz e desafiar a adversidade do vento, depurando e transformando em arte os escombros da memória própria ou inventada:

a água é o princípio do lábio
submerge o corpo do sangue do cordeiro
na pronúncia da primeira terra.


Mas observa e aprende, descreve e inscreve:

na gávea dos sentidos há o país das águas

Na percepção que só no íntimo encontrará o objecto da sua demanda, mesura o tempo de chegar, de construir um porto, um cais. Dar-lhe um nome que corresponda ao encontro consigo ou, mais concretamente, com as palavras, sobretudo com a palavra casa ou ventre.

Se iniciou com um isomorfismo omnipresente no primeiro ciclo, com poemas de catorze versos, se prosseguiu no segundo com um jogo polimórfico, o ancorar só se poderia dar com os mesmo catorze versos iniciais, mas recorrendo a uma estruturação diferente, aquela que a casa da Poesia lhe oferta, guardada que está através dos tempos: o soneto, mas em verso branco porque há em si vestígios da demanda empreendida. Novos caminhos que se descobrem na sua memória porque o acto poético é um acto de vida:

(...) beijo o mar
como se é o ventre de minha mãe
(...)
demoro na colecta da semente

e no apetite da voragem morro
abraçado ao tronco do esquecimento;
enfim, chegado à terra da alegria.

Obrigado.

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