Antes de mais, embora sabendo que me vou novamente repetir, mas há repetições que nunca são em demasia, agradeço a vossa presença neste sábado de inverno, sábado de um fim de semana prolongado, ainda por cima com o natal já ao virar da esquina.
Esta vossa opção é para quem escreve algo que significa muito. Quem escreve dá-se em cada caractere, mas só se pode dar quando há quem receba. Daí o meu muito obrigado.
Ora bem. Quando abri o ficheiro deste “Arquitectura de um fragmento”, antes de tudo, o que pensei foi: “coitado do paginador, vai ver-se grego para o compor”.
No entanto, isso é um problema que ele teria de resolver. Não era um problema meu. Como tinha e continuo a ter confiança na decisão dos meus pares que constituem o que nós chamamos de painel de autores Edium, que analisam e emitem o seu parecer sobre as obras que esta edita, atrevi-me a ler, isto antes de comunicar à autora a decisão tomada.
Devo-vos dizer aquela frase feita: primeiro estranha-se, depois entranha-se. Este livro de Betty Branco Martins é, na minha opinião, uma das mais interessantes obras de poesia que a Edium editou no decurso deste ano de dois mil e oito.
Naturalmente que esta minha opinião é exactamente isso: é minha. Mas sendo minha teoricamente nada teria a ver com o impacto inicial causado pela componente visual com que a poetisa espraia o seu texto pelo tradicional branco da página, antes seria o reflexo do conteúdo com que nos incita à leitura e, sobretudo, à reflexão.
Mas não é bem o caso. Esta forma de construir o seu registo, este corpo desenhado para cada poema, dá-nos uma dimensão diversa, uma espécie de guia, de mapa, talvez um moderno g.p.s. para uma nova forma de respiração do verso.
A sua mensagem alia-se portanto a uma cadência interna, não por uma opção silábica, mas por uma estrutura gráfica que leva o leitor a descobrir um ritmo melódico deveras curioso.
Mas que arquitectura e que fragmento, sobretudo este último, dado ser indeterminado. É um fragmento, não o fragmento.
Por definição, arquitectura é a arte de levantar construções de toda a espécie. Por seu turno, fragmento é cada uma – novamente o indeterminado – é cada uma das partes em que se separou um objecto que rompeu ou partiu.
Mas fragmento é parte de um todo, melhor: é a memória desse todo. A prova inequívoca da passada existência de um todo.
Talvez por isso a poetisa procure para a elaboração desta arquitectura de um fragmento um registo intertextual. Dou-vos dois exemplos presentes nos poemas sugestivamente intitulados “O que querem os deuses” e “O ____ Deus _______ das pequenas coisas”.
No primeiro, Betty Branco Martins escreve:
"tens uma faca nos dentes"
No segundo, é o próprio título: “O ____ Deus _______ das pequenas coisas”.
No primeiro exemplo, sinto a alusão a António José Forte que em mil novecentos e oitenta e três publica um livro sob o título: “uma faca entre os dentes” e, no segundo, a presença de Arundhati Roy que no ano de mil novecentos e noventa e sete recebe o Booker Prize exactamente com uma obra que, na sua versão portuguesa, se intitula “o deus das pequenas coisas”.
Com isto, naturalmente segundo a minha leitura, pretende Betty Branco Martins dar-nos a sugestão de quão preciosa é a nossa memória, desta feita aquela que se ergue através da cultura.
Mas a poetisa vai mais longe, não se resume à cultura nada na literatura, antes viaja para o desvelar deste fragmento por outras artes:
Pela música, por exemplo, leia-se no poema “Palhaço” a referência a:
“[Quasi una fantasía]_Beethoven”
ou pela pintura, como se pode ler no poema: “Instantes __________ d’alma”:
“_____________________________________________________ ouvia
flores __________ primavera. no nascimento de Vénus feito por Botticelli”
São de facto referências, marcos geodésicos para o implementar de todo o projecto de arquitectura. Betty Branco Martins desafia-nos, já dentro do próprio corpo poético, à recolha de cada um destes fragmentos para o decifrar do fragmento inicial.
Mas a poetisa não resume a sua construção futura à memória, isto porque, tal como escreve no poema “[IN]sentidos___na sede”,
“_____o caminho para o poço
não significa
o fim da nossa sede”
Há portanto que desbravar os próprios mistérios da arte, neste caso, da escrita. Os artefactos, as regras com que se tornaram possíveis não só o recuperar do tempo, mas o edificar do tempo presente e futuro.
A escrita, a arte, torna-se tema. Leia-se, como exemplo, no poema: “Instantes __________ d’alma”, o seguinte:
“numa contemplação do artista __ contínua da natureza __ pois é impossível para ele reproduzir com a mão a partir do natural ___ se não forjou primeiro na imaginação ___ e para fazê-lo precisa estar muito atento ___ pois os movimentos da alma só se manifestam por instantes ___ muito breves”
Há necessidade para o erguer da obra de possuir mecanismos que sejam capazes de captar esses instantes, esses muito breves instantes. É essa a demanda que podemos vislumbrar em diversos momentos neste “Arquitectura de um fragmento”.
Mas este livro cativou-me sobretudo por um motivo. A arte não está dissociada da vida, muito antes pelo contrário. Ela é o reflexo da vida. E sendo-o, o que faz arte não pode, nem deve, como se costuma dizer, assobiar para o lado, fingir que não vê o que o rodeia.
Betty Branco Martins faz, também, da sua poesia uma arma contra o silêncio e a indiferença. Leia-se o poema “A ___ única ___ testemunha” ou “A ___ terra ___ às avessas”. São poemas com imagens fortes, poderosas a que ninguém pode ficar indiferente. Do segundo, retirei esta quadra que agora vos leio.
“O sol ficou prisioneiro
Dalguns ___ que disseram ser seus compradores
A chuva em cestos de verga ___ era o seu dinheiro
Leveza dos sonhos ___ mortos pelos senhores”
Ou do poema “estão vazias __ vazias”, este verso:
“Povo de bolsos vazios. d'onde roubaram tudo __ até o cotão”
“Arquitectura de um fragmento” é de facto um livro que vale bem a pena decifrar.
Muito obrigado
Esta vossa opção é para quem escreve algo que significa muito. Quem escreve dá-se em cada caractere, mas só se pode dar quando há quem receba. Daí o meu muito obrigado.
Ora bem. Quando abri o ficheiro deste “Arquitectura de um fragmento”, antes de tudo, o que pensei foi: “coitado do paginador, vai ver-se grego para o compor”.
No entanto, isso é um problema que ele teria de resolver. Não era um problema meu. Como tinha e continuo a ter confiança na decisão dos meus pares que constituem o que nós chamamos de painel de autores Edium, que analisam e emitem o seu parecer sobre as obras que esta edita, atrevi-me a ler, isto antes de comunicar à autora a decisão tomada.
Devo-vos dizer aquela frase feita: primeiro estranha-se, depois entranha-se. Este livro de Betty Branco Martins é, na minha opinião, uma das mais interessantes obras de poesia que a Edium editou no decurso deste ano de dois mil e oito.
Naturalmente que esta minha opinião é exactamente isso: é minha. Mas sendo minha teoricamente nada teria a ver com o impacto inicial causado pela componente visual com que a poetisa espraia o seu texto pelo tradicional branco da página, antes seria o reflexo do conteúdo com que nos incita à leitura e, sobretudo, à reflexão.
Mas não é bem o caso. Esta forma de construir o seu registo, este corpo desenhado para cada poema, dá-nos uma dimensão diversa, uma espécie de guia, de mapa, talvez um moderno g.p.s. para uma nova forma de respiração do verso.
A sua mensagem alia-se portanto a uma cadência interna, não por uma opção silábica, mas por uma estrutura gráfica que leva o leitor a descobrir um ritmo melódico deveras curioso.
Mas que arquitectura e que fragmento, sobretudo este último, dado ser indeterminado. É um fragmento, não o fragmento.
Por definição, arquitectura é a arte de levantar construções de toda a espécie. Por seu turno, fragmento é cada uma – novamente o indeterminado – é cada uma das partes em que se separou um objecto que rompeu ou partiu.
Mas fragmento é parte de um todo, melhor: é a memória desse todo. A prova inequívoca da passada existência de um todo.
Talvez por isso a poetisa procure para a elaboração desta arquitectura de um fragmento um registo intertextual. Dou-vos dois exemplos presentes nos poemas sugestivamente intitulados “O que querem os deuses” e “O ____ Deus _______ das pequenas coisas”.
No primeiro, Betty Branco Martins escreve:
"tens uma faca nos dentes"
No segundo, é o próprio título: “O ____ Deus _______ das pequenas coisas”.
No primeiro exemplo, sinto a alusão a António José Forte que em mil novecentos e oitenta e três publica um livro sob o título: “uma faca entre os dentes” e, no segundo, a presença de Arundhati Roy que no ano de mil novecentos e noventa e sete recebe o Booker Prize exactamente com uma obra que, na sua versão portuguesa, se intitula “o deus das pequenas coisas”.
Com isto, naturalmente segundo a minha leitura, pretende Betty Branco Martins dar-nos a sugestão de quão preciosa é a nossa memória, desta feita aquela que se ergue através da cultura.
Mas a poetisa vai mais longe, não se resume à cultura nada na literatura, antes viaja para o desvelar deste fragmento por outras artes:
Pela música, por exemplo, leia-se no poema “Palhaço” a referência a:
“[Quasi una fantasía]_Beethoven”
ou pela pintura, como se pode ler no poema: “Instantes __________ d’alma”:
“_____________________________________________________ ouvia
flores __________ primavera. no nascimento de Vénus feito por Botticelli”
São de facto referências, marcos geodésicos para o implementar de todo o projecto de arquitectura. Betty Branco Martins desafia-nos, já dentro do próprio corpo poético, à recolha de cada um destes fragmentos para o decifrar do fragmento inicial.
Mas a poetisa não resume a sua construção futura à memória, isto porque, tal como escreve no poema “[IN]sentidos___na sede”,
“_____o caminho para o poço
não significa
o fim da nossa sede”
Há portanto que desbravar os próprios mistérios da arte, neste caso, da escrita. Os artefactos, as regras com que se tornaram possíveis não só o recuperar do tempo, mas o edificar do tempo presente e futuro.
A escrita, a arte, torna-se tema. Leia-se, como exemplo, no poema: “Instantes __________ d’alma”, o seguinte:
“numa contemplação do artista __ contínua da natureza __ pois é impossível para ele reproduzir com a mão a partir do natural ___ se não forjou primeiro na imaginação ___ e para fazê-lo precisa estar muito atento ___ pois os movimentos da alma só se manifestam por instantes ___ muito breves”
Há necessidade para o erguer da obra de possuir mecanismos que sejam capazes de captar esses instantes, esses muito breves instantes. É essa a demanda que podemos vislumbrar em diversos momentos neste “Arquitectura de um fragmento”.
Mas este livro cativou-me sobretudo por um motivo. A arte não está dissociada da vida, muito antes pelo contrário. Ela é o reflexo da vida. E sendo-o, o que faz arte não pode, nem deve, como se costuma dizer, assobiar para o lado, fingir que não vê o que o rodeia.
Betty Branco Martins faz, também, da sua poesia uma arma contra o silêncio e a indiferença. Leia-se o poema “A ___ única ___ testemunha” ou “A ___ terra ___ às avessas”. São poemas com imagens fortes, poderosas a que ninguém pode ficar indiferente. Do segundo, retirei esta quadra que agora vos leio.
“O sol ficou prisioneiro
Dalguns ___ que disseram ser seus compradores
A chuva em cestos de verga ___ era o seu dinheiro
Leveza dos sonhos ___ mortos pelos senhores”
Ou do poema “estão vazias __ vazias”, este verso:
“Povo de bolsos vazios. d'onde roubaram tudo __ até o cotão”
“Arquitectura de um fragmento” é de facto um livro que vale bem a pena decifrar.
Muito obrigado
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