Antes do mais, agradeço a vossa presença nesta bela tarde de sábado. Como por diversas vezes já afirmei, a Poesia de nada vale sem público. São os leitores a essência do ofício poético.
Obrigado por isso.
Numa altura em que os caminhos da Poesia, na sua generalidade, vão desembocar a um certo hermetismo, é reconfortante descobrir vozes que navegam por outras vias.
Naturalmente que me refiro, especialmente, ao poeta de quem hoje se apresenta este título: “Rio de sal”, o Luís Ferreira.
Do Luís Ferreira, como pessoa, o que sei, surge basicamente do que li e de um curto encontro em Viana do Alentejo, onde nos brindou: a mim e ao poeta José-Augusto de Carvalho, com a sua presença aquando do lançamento conjunto do meu “O livro do regresso” e do “Da humana condição”, desse excelente poeta alentejano.
Mas sei um pouco mais, para além do que transparece do que escreve e do pouco que falámos na altura. Tem 38 anos, feitos recentemente, sendo natural desta cidade que hoje nos acolhe, o Barreiro.
A sua obra já foi objecto de diversas distinções. E publicou o seu primeiro livro no ano passado, “Mar de sonhos”, título homónimo do seu blogue.
Ora bem, este seu segundo título: “Rio de sal”, pelo que em suas águas transporta, faz-nos, não edificar uma ponte, mas deixarmo-nos levar na sua corrente, na sua serena corrente.
É um livro que pretende, não uma contemplação exterior, sendo, portanto, a tal ponte desnecessária, mas uma observação de dentro dos próprios mecanismos do poema.
Há que sentir. É por isso que considero “Rio de sal” um retrato do homem e do poeta, da sensibilidade que o homem possui e que o poeta transporta para a condição de poema.
Passo a explicar. Lê-lo foi revisitar um dos pontos altos de qualquer época da História da Poesia: a temática amorosa. Embora não seja da opinião do poeta francês Mallarmé que refere que a poesia se faz com palavras, e não com ideias, devo reconhecer que, tendo como antípoda da ideia ou razão o sentimento, as palavras adquirem uma outra conotação.
A Poesia de Luís Ferreira vai por aí, desenvolve-se nesse caminho da palavra possuidora de musicalidade para o despertar dos sentidos. Não quero com isto dizer que a ideia, ou sua visão pessoal do mundo, esteja fora da sua Poesia, muito pelo contrário.
Mas Luís Ferreira pretende sobretudo, naturalmente que isto é a minha leitura, chegar a uma outra foz.
Este rio pretende o mar, tal como qualquer outro rio, mas o seu mar é aquilo a que nós nos habituámos a designar por coração. Ou seja: a nossa forma sensível de encararmos e compreendermos o mundo.
Neste “Rio de sal” encontro o rosto do filho pródigo que regressa à casa da Poesia. Mas que desenha esse seu caminho, não de mãos vazias, mas trazendo consigo o tema, reforço aqui a utilização do artigo definido, porque é o tema da Poesia: o amor.
Um pequeno parêntesis: o amor e a morte são os temas de eleição da Poesia, opinião que não é só a minha, mas que é partilhado por muitos. Naturalmente, vale o que vale.
Quando há pouco referi a questão temporal, desta temática ser transversal à História da Poesia, fi-lo com natural convicção.
Proponho-vos, portanto, uma pequena viagem pelo tempo, dando voz aos poetas, e onde os encontro, naturalmente, neste “Rio de sal”, de Luís Ferreira.
Em jeito de epígrafe, deixo-vos uma citação de um poeta, como tantos outros, esquecido por este país pretensamente de poetas, refiro-me a Gabriel Pereira de Castro, poeta do século XVI, e que é a seguinte:
Como é no mundo Amor quinto elemento
Que tem dos gostos uma e outra chave
Antes, o que motivou esta procura, e esta necessidade de viajar através do tempo, seguindo, como os nossos antigos marinheiros, a linha de costa propiciada pela Poesia de Luís Ferreira.
Estes foram os dois versos causadores desta demanda, incluídos no poema: “Uma morte anunciada”. Passo a citar:
Geração após geração...
Tudo é uno e o uno é universo.
Posto isto, iniciemos então esta viagem escutando João Airas de Santiago, da segunda metade do século XIII:
Dos que a guardam sei eu já
que lhis non pod’ ome alá ir,
mais direi-vos, por non mentir:
pero mui guardad’ está,
quantos dias no mundo son,
alá vai o meu coraçon.
Agora, Luís Ferreira, com excertos retirados do poema: “Meu amor, preciso de ti esta noite...”:
Sinto-me só no meu mundo
(...)
peço ao vento que transporte o meu desejo
(...)
Quero que a tua respiração rompa este silêncio,
E as palavras secretas alegrem o meu coração
(...)
como preciso do teu amor,
Para ser feliz...
Como preciso de ti esta noite...
Tal como o poeta galaico-português, Luís Ferreira sabe moldar esta vertente, a do amor distante e a necessidade de o ter ao seu lado: ou seja, uma esperança que não se esvai, por muito difícil que seja o concretizar desse desejo.
Mas esta herança não advém só da Idade Média, ela surge, embora de uma forma mais directa, com um poeta quinhentista, o nosso poeta maior, Luís Vaz de Camões, ao introduzir Luís Ferreira um dos mais conhecidos versos camonianos: “Amor é fogo que arde sem se ver”, no seu poema: “Contos de fadas”.
Aliás, a ideia do amor como fogo, sobretudo como visão de purificação, surge amiúde neste volume.
Prosseguindo a nossa viagem, agora Bocage, poeta oitocentista, escutemos:
Tu és meu coração, tu és meu nume;
Não vive para mim do mundo o resto;
A morte, a vida, os Céus, meu fado atesto,
Meu fado, que em teus olhos se resume.
Luís Ferreira apresenta-nos o amor como algo essencial para a existência humana, talvez resuma desta forma essa ideia no poema: “A noite é nossa, meu amor”:
Num compasso intemporal, cíclico e constante,
Obra majestosa do grande Maestro,
Que acontece desde o princípio dos tempos.
Ou seja, esta obra majestosa, o amor, assumindo a tal condição de quinto elemento, porque criada pelo Maestro, é algo que se repete, mas sobretudo se reinventa através do tempo.
Sendo o poeta homem do seu tempo, mas que concebe, ou deveria conceber, a sua obra como intemporal, é nele que reside a obrigação de decifrar essa matéria, torná-la visível aos olhos do outro, do seu contemporâneo e do seu vindouro.
Para concluir esta pequena amostragem da temática amorosa na Poesia de Língua Portuguesa, e de como Luís Ferreira trabalha a essência dessa matéria da nossa memória cultural e a incorpora, transformada na sua própria oficina poética, com o seu próprio registro, um último exemplo: Vinicius de Moraes, poeta brasileiro do século XX:
(...) de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de amar de amar mais do que pude.
A perenidade do amor que é aqui mencionada, encontro-a em diversos instantes de “Rio de sal”, como exemplo, no poema: “Eu e tu somos um”, onde a dado passo lê-se:
O cedo fica tarde, e o tempo pára...
O mundo não gira, nada importa,
(...)
Ficamos perdidos naquele eterno momento
Com estes pequenos exemplos pretendi situar o livro: “Rio de sal”, e, necessariamente, o seu autor, numa espécie de árvore genealógica. Uma das mais frondosas árvores, não só da Poesia de Língua Portuguesa, mas de toda a Poesia.
E o amor como base temática é, sem dúvida, de importância maior na Poesia, não só, pelos diversos nomes que mencionei, se poderia chegar a essa conclusão, mas sobretudo porque vivemos tempos de um certo alheamento.
E a Poesia tem por obrigação não ser uma linguagem virada para o próprio umbigo, mas vocacionada para o acordar dos homens. Sobretudo, embora não esquecendo o passado, deve estar virada para o futuro.
Assim, como diz Luís Ferreira no poema: “Mundos de silêncio e de escuridão”, e com esta citação concluo:
Como é belo o mundo, o canto de um pássaro...
A melodia do sorriso de uma criança feliz.
Obrigado ao Luís Ferreira pelo voto de confiança, à Edium por mais esta aposta e a todos vós, de novo, o meu muito obrigado.
Que este “Rio de sal” vos traga, tal como me ocorreu, instantes de boa Poesia.
Obrigado por isso.
Numa altura em que os caminhos da Poesia, na sua generalidade, vão desembocar a um certo hermetismo, é reconfortante descobrir vozes que navegam por outras vias.
Naturalmente que me refiro, especialmente, ao poeta de quem hoje se apresenta este título: “Rio de sal”, o Luís Ferreira.
Do Luís Ferreira, como pessoa, o que sei, surge basicamente do que li e de um curto encontro em Viana do Alentejo, onde nos brindou: a mim e ao poeta José-Augusto de Carvalho, com a sua presença aquando do lançamento conjunto do meu “O livro do regresso” e do “Da humana condição”, desse excelente poeta alentejano.
Mas sei um pouco mais, para além do que transparece do que escreve e do pouco que falámos na altura. Tem 38 anos, feitos recentemente, sendo natural desta cidade que hoje nos acolhe, o Barreiro.
A sua obra já foi objecto de diversas distinções. E publicou o seu primeiro livro no ano passado, “Mar de sonhos”, título homónimo do seu blogue.
Ora bem, este seu segundo título: “Rio de sal”, pelo que em suas águas transporta, faz-nos, não edificar uma ponte, mas deixarmo-nos levar na sua corrente, na sua serena corrente.
É um livro que pretende, não uma contemplação exterior, sendo, portanto, a tal ponte desnecessária, mas uma observação de dentro dos próprios mecanismos do poema.
Há que sentir. É por isso que considero “Rio de sal” um retrato do homem e do poeta, da sensibilidade que o homem possui e que o poeta transporta para a condição de poema.
Passo a explicar. Lê-lo foi revisitar um dos pontos altos de qualquer época da História da Poesia: a temática amorosa. Embora não seja da opinião do poeta francês Mallarmé que refere que a poesia se faz com palavras, e não com ideias, devo reconhecer que, tendo como antípoda da ideia ou razão o sentimento, as palavras adquirem uma outra conotação.
A Poesia de Luís Ferreira vai por aí, desenvolve-se nesse caminho da palavra possuidora de musicalidade para o despertar dos sentidos. Não quero com isto dizer que a ideia, ou sua visão pessoal do mundo, esteja fora da sua Poesia, muito pelo contrário.
Mas Luís Ferreira pretende sobretudo, naturalmente que isto é a minha leitura, chegar a uma outra foz.
Este rio pretende o mar, tal como qualquer outro rio, mas o seu mar é aquilo a que nós nos habituámos a designar por coração. Ou seja: a nossa forma sensível de encararmos e compreendermos o mundo.
Neste “Rio de sal” encontro o rosto do filho pródigo que regressa à casa da Poesia. Mas que desenha esse seu caminho, não de mãos vazias, mas trazendo consigo o tema, reforço aqui a utilização do artigo definido, porque é o tema da Poesia: o amor.
Um pequeno parêntesis: o amor e a morte são os temas de eleição da Poesia, opinião que não é só a minha, mas que é partilhado por muitos. Naturalmente, vale o que vale.
Quando há pouco referi a questão temporal, desta temática ser transversal à História da Poesia, fi-lo com natural convicção.
Proponho-vos, portanto, uma pequena viagem pelo tempo, dando voz aos poetas, e onde os encontro, naturalmente, neste “Rio de sal”, de Luís Ferreira.
Em jeito de epígrafe, deixo-vos uma citação de um poeta, como tantos outros, esquecido por este país pretensamente de poetas, refiro-me a Gabriel Pereira de Castro, poeta do século XVI, e que é a seguinte:
Como é no mundo Amor quinto elemento
Que tem dos gostos uma e outra chave
Antes, o que motivou esta procura, e esta necessidade de viajar através do tempo, seguindo, como os nossos antigos marinheiros, a linha de costa propiciada pela Poesia de Luís Ferreira.
Estes foram os dois versos causadores desta demanda, incluídos no poema: “Uma morte anunciada”. Passo a citar:
Geração após geração...
Tudo é uno e o uno é universo.
Posto isto, iniciemos então esta viagem escutando João Airas de Santiago, da segunda metade do século XIII:
Dos que a guardam sei eu já
que lhis non pod’ ome alá ir,
mais direi-vos, por non mentir:
pero mui guardad’ está,
quantos dias no mundo son,
alá vai o meu coraçon.
Agora, Luís Ferreira, com excertos retirados do poema: “Meu amor, preciso de ti esta noite...”:
Sinto-me só no meu mundo
(...)
peço ao vento que transporte o meu desejo
(...)
Quero que a tua respiração rompa este silêncio,
E as palavras secretas alegrem o meu coração
(...)
como preciso do teu amor,
Para ser feliz...
Como preciso de ti esta noite...
Tal como o poeta galaico-português, Luís Ferreira sabe moldar esta vertente, a do amor distante e a necessidade de o ter ao seu lado: ou seja, uma esperança que não se esvai, por muito difícil que seja o concretizar desse desejo.
Mas esta herança não advém só da Idade Média, ela surge, embora de uma forma mais directa, com um poeta quinhentista, o nosso poeta maior, Luís Vaz de Camões, ao introduzir Luís Ferreira um dos mais conhecidos versos camonianos: “Amor é fogo que arde sem se ver”, no seu poema: “Contos de fadas”.
Aliás, a ideia do amor como fogo, sobretudo como visão de purificação, surge amiúde neste volume.
Prosseguindo a nossa viagem, agora Bocage, poeta oitocentista, escutemos:
Tu és meu coração, tu és meu nume;
Não vive para mim do mundo o resto;
A morte, a vida, os Céus, meu fado atesto,
Meu fado, que em teus olhos se resume.
Luís Ferreira apresenta-nos o amor como algo essencial para a existência humana, talvez resuma desta forma essa ideia no poema: “A noite é nossa, meu amor”:
Num compasso intemporal, cíclico e constante,
Obra majestosa do grande Maestro,
Que acontece desde o princípio dos tempos.
Ou seja, esta obra majestosa, o amor, assumindo a tal condição de quinto elemento, porque criada pelo Maestro, é algo que se repete, mas sobretudo se reinventa através do tempo.
Sendo o poeta homem do seu tempo, mas que concebe, ou deveria conceber, a sua obra como intemporal, é nele que reside a obrigação de decifrar essa matéria, torná-la visível aos olhos do outro, do seu contemporâneo e do seu vindouro.
Para concluir esta pequena amostragem da temática amorosa na Poesia de Língua Portuguesa, e de como Luís Ferreira trabalha a essência dessa matéria da nossa memória cultural e a incorpora, transformada na sua própria oficina poética, com o seu próprio registro, um último exemplo: Vinicius de Moraes, poeta brasileiro do século XX:
(...) de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de amar de amar mais do que pude.
A perenidade do amor que é aqui mencionada, encontro-a em diversos instantes de “Rio de sal”, como exemplo, no poema: “Eu e tu somos um”, onde a dado passo lê-se:
O cedo fica tarde, e o tempo pára...
O mundo não gira, nada importa,
(...)
Ficamos perdidos naquele eterno momento
Com estes pequenos exemplos pretendi situar o livro: “Rio de sal”, e, necessariamente, o seu autor, numa espécie de árvore genealógica. Uma das mais frondosas árvores, não só da Poesia de Língua Portuguesa, mas de toda a Poesia.
E o amor como base temática é, sem dúvida, de importância maior na Poesia, não só, pelos diversos nomes que mencionei, se poderia chegar a essa conclusão, mas sobretudo porque vivemos tempos de um certo alheamento.
E a Poesia tem por obrigação não ser uma linguagem virada para o próprio umbigo, mas vocacionada para o acordar dos homens. Sobretudo, embora não esquecendo o passado, deve estar virada para o futuro.
Assim, como diz Luís Ferreira no poema: “Mundos de silêncio e de escuridão”, e com esta citação concluo:
Como é belo o mundo, o canto de um pássaro...
A melodia do sorriso de uma criança feliz.
Obrigado ao Luís Ferreira pelo voto de confiança, à Edium por mais esta aposta e a todos vós, de novo, o meu muito obrigado.
Que este “Rio de sal” vos traga, tal como me ocorreu, instantes de boa Poesia.
2 comentários:
Muitíssimo bom o trabalho de ambos, o seu e o do Luís, neste dia que tive o grato prazer de partilhar. As amaiores venturas a ambos!
Um abraço
Mel
Cara Mel,
De facto há dias assim, dias em que, nem que seja só por esse instante, nos dizem que há futuro para a Poesia.
Um beijo
Xavier Zarco
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