domingo, 18 de maio de 2008

2008.05.17 - Auditório da Biblioteca Municipal do Barreiro - Apresentação de "Rio de sal", Luís Ferreira (Edium Editores, 2008)

Antes do mais, agradeço a vossa presença nesta bela tarde de sábado. Como por diversas vezes já afirmei, a Poesia de nada vale sem público. São os leitores a essência do ofício poético.

Obrigado por isso.

Numa altura em que os caminhos da Poesia, na sua generalidade, vão desembocar a um certo hermetismo, é reconfortante descobrir vozes que navegam por outras vias.

Naturalmente que me refiro, especialmente, ao poeta de quem hoje se apresenta este título: “Rio de sal”, o Luís Ferreira.

Do Luís Ferreira, como pessoa, o que sei, surge basicamente do que li e de um curto encontro em Viana do Alentejo, onde nos brindou: a mim e ao poeta José-Augusto de Carvalho, com a sua presença aquando do lançamento conjunto do meu “O livro do regresso” e do “Da humana condição”, desse excelente poeta alentejano.

Mas sei um pouco mais, para além do que transparece do que escreve e do pouco que falámos na altura. Tem 38 anos, feitos recentemente, sendo natural desta cidade que hoje nos acolhe, o Barreiro.

A sua obra já foi objecto de diversas distinções. E publicou o seu primeiro livro no ano passado, “Mar de sonhos”, título homónimo do seu blogue.

Ora bem, este seu segundo título: “Rio de sal”, pelo que em suas águas transporta, faz-nos, não edificar uma ponte, mas deixarmo-nos levar na sua corrente, na sua serena corrente.

É um livro que pretende, não uma contemplação exterior, sendo, portanto, a tal ponte desnecessária, mas uma observação de dentro dos próprios mecanismos do poema.

Há que sentir. É por isso que considero “Rio de sal” um retrato do homem e do poeta, da sensibilidade que o homem possui e que o poeta transporta para a condição de poema.

Passo a explicar. Lê-lo foi revisitar um dos pontos altos de qualquer época da História da Poesia: a temática amorosa. Embora não seja da opinião do poeta francês Mallarmé que refere que a poesia se faz com palavras, e não com ideias, devo reconhecer que, tendo como antípoda da ideia ou razão o sentimento, as palavras adquirem uma outra conotação.

A Poesia de Luís Ferreira vai por aí, desenvolve-se nesse caminho da palavra possuidora de musicalidade para o despertar dos sentidos. Não quero com isto dizer que a ideia, ou sua visão pessoal do mundo, esteja fora da sua Poesia, muito pelo contrário.

Mas Luís Ferreira pretende sobretudo, naturalmente que isto é a minha leitura, chegar a uma outra foz.

Este rio pretende o mar, tal como qualquer outro rio, mas o seu mar é aquilo a que nós nos habituámos a designar por coração. Ou seja: a nossa forma sensível de encararmos e compreendermos o mundo.

Neste “Rio de sal” encontro o rosto do filho pródigo que regressa à casa da Poesia. Mas que desenha esse seu caminho, não de mãos vazias, mas trazendo consigo o tema, reforço aqui a utilização do artigo definido, porque é o tema da Poesia: o amor.

Um pequeno parêntesis: o amor e a morte são os temas de eleição da Poesia, opinião que não é só a minha, mas que é partilhado por muitos. Naturalmente, vale o que vale.

Quando há pouco referi a questão temporal, desta temática ser transversal à História da Poesia, fi-lo com natural convicção.

Proponho-vos, portanto, uma pequena viagem pelo tempo, dando voz aos poetas, e onde os encontro, naturalmente, neste “Rio de sal”, de Luís Ferreira.

Em jeito de epígrafe, deixo-vos uma citação de um poeta, como tantos outros, esquecido por este país pretensamente de poetas, refiro-me a Gabriel Pereira de Castro, poeta do século XVI, e que é a seguinte:

Como é no mundo Amor quinto elemento
Que tem dos gostos uma e outra chave


Antes, o que motivou esta procura, e esta necessidade de viajar através do tempo, seguindo, como os nossos antigos marinheiros, a linha de costa propiciada pela Poesia de Luís Ferreira.

Estes foram os dois versos causadores desta demanda, incluídos no poema: “Uma morte anunciada”. Passo a citar:

Geração após geração...
Tudo é uno e o uno é universo.

Posto isto, iniciemos então esta viagem escutando João Airas de Santiago, da segunda metade do século XIII:

Dos que a guardam sei eu já
que lhis non pod’ ome alá ir,
mais direi-vos, por non mentir:
pero mui guardad’ está,
quantos dias no mundo son,
alá vai o meu coraçon.

Agora, Luís Ferreira, com excertos retirados do poema: “Meu amor, preciso de ti esta noite...”:

Sinto-me só no meu mundo
(...)
peço ao vento que transporte o meu desejo
(...)
Quero que a tua respiração rompa este silêncio,
E as palavras secretas alegrem o meu coração
(...)
como preciso do teu amor,
Para ser feliz...
Como preciso de ti esta noite...

Tal como o poeta galaico-português, Luís Ferreira sabe moldar esta vertente, a do amor distante e a necessidade de o ter ao seu lado: ou seja, uma esperança que não se esvai, por muito difícil que seja o concretizar desse desejo.

Mas esta herança não advém só da Idade Média, ela surge, embora de uma forma mais directa, com um poeta quinhentista, o nosso poeta maior, Luís Vaz de Camões, ao introduzir Luís Ferreira um dos mais conhecidos versos camonianos: “Amor é fogo que arde sem se ver”, no seu poema: “Contos de fadas”.

Aliás, a ideia do amor como fogo, sobretudo como visão de purificação, surge amiúde neste volume.

Prosseguindo a nossa viagem, agora Bocage, poeta oitocentista, escutemos:

Tu és meu coração, tu és meu nume;
Não vive para mim do mundo o resto;
A morte, a vida, os Céus, meu fado atesto,
Meu fado, que em teus olhos se resume.


Luís Ferreira apresenta-nos o amor como algo essencial para a existência humana, talvez resuma desta forma essa ideia no poema: “A noite é nossa, meu amor”:

Num compasso intemporal, cíclico e constante,
Obra majestosa do grande Maestro,
Que acontece desde o princípio dos tempos.

Ou seja, esta obra majestosa, o amor, assumindo a tal condição de quinto elemento, porque criada pelo Maestro, é algo que se repete, mas sobretudo se reinventa através do tempo.

Sendo o poeta homem do seu tempo, mas que concebe, ou deveria conceber, a sua obra como intemporal, é nele que reside a obrigação de decifrar essa matéria, torná-la visível aos olhos do outro, do seu contemporâneo e do seu vindouro.

Para concluir esta pequena amostragem da temática amorosa na Poesia de Língua Portuguesa, e de como Luís Ferreira trabalha a essência dessa matéria da nossa memória cultural e a incorpora, transformada na sua própria oficina poética, com o seu próprio registro, um último exemplo: Vinicius de Moraes, poeta brasileiro do século XX:

(...) de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de amar de amar mais do que pude.

A perenidade do amor que é aqui mencionada, encontro-a em diversos instantes de “Rio de sal”, como exemplo, no poema: “Eu e tu somos um”, onde a dado passo lê-se:

O cedo fica tarde, e o tempo pára...
O mundo não gira, nada importa,
(...)
Ficamos perdidos naquele eterno momento

Com estes pequenos exemplos pretendi situar o livro: “Rio de sal”, e, necessariamente, o seu autor, numa espécie de árvore genealógica. Uma das mais frondosas árvores, não só da Poesia de Língua Portuguesa, mas de toda a Poesia.

E o amor como base temática é, sem dúvida, de importância maior na Poesia, não só, pelos diversos nomes que mencionei, se poderia chegar a essa conclusão, mas sobretudo porque vivemos tempos de um certo alheamento.

E a Poesia tem por obrigação não ser uma linguagem virada para o próprio umbigo, mas vocacionada para o acordar dos homens. Sobretudo, embora não esquecendo o passado, deve estar virada para o futuro.

Assim, como diz Luís Ferreira no poema: “Mundos de silêncio e de escuridão”, e com esta citação concluo:

Como é belo o mundo, o canto de um pássaro...
A melodia do sorriso de uma criança feliz.

Obrigado ao Luís Ferreira pelo voto de confiança, à Edium por mais esta aposta e a todos vós, de novo, o meu muito obrigado.

Que este “Rio de sal” vos traga, tal como me ocorreu, instantes de boa Poesia.

PREFÁCIO - "Rio de sal", Luís Ferreira

"Rio de sal"
Luís Ferreira
Edium Editores, 2008





Sempre procurei saber ao longo da minha vida do por quê das minhas diversas reacções. O que me faz ser e agir desta ou daquela forma. Medito sobre tudo e mais alguma coisa.

Sobre livros, não é o nome do autor, sequer a capa, a dimensão, a sugestão ou a resenha lida algures o que me cativa. Porém, não escondo que também adquiro, tirando a dimensão, pelas razões que mencionei. Mas o título, esse sim, exerce sobre mim o fascínio que me levou a descobrir vários escritores, sobretudo poetas.

Alguns exemplos de autores que assim encontrei: Amadeu Baptista, “As passagens secretas” (Fenda Edições, Coimbra, 1982); Ernesto Sampaio, “A procura do silêncio” (Hiena Editora, Lisboa, 1986); Emanuel de Sousa, “Eurídice” (Quetzal Editores, Lisboa, 1989); ou Cristóvão de Aguiar, “Sonetos de amor ilhéu” (Edição de autor, Coimbra, 1992).

Pois bem, o título da obra que vos chega às mãos, “Rio de sal”, configura-se num dos que me obrigaria a pegá-lo e a descobrir o que guardava dentro de si. E que não se pense que esta afirmação é escrita só por a escrever. Quem conhece a minha Poesia, sabe que as palavras rio e sal surgem, sobretudo a primeira, por diversas ocasiões.

Rio transporta-me para uma representação da própria vida: a fragilidade do nascimento; a impetuosidade da infância e adolescência; a ponderação do adulto; a serenidade da velhice; a inevitável resignação perante a morte. A morte que muitas vezes visto com a palavra sal.

Rio de sal é, portanto, a metáfora da vida plena porque encerra em si a consciência da morte, do que é inadiável e, como tal, torna urgente o usufruto de cada ínfima parte do tempo que medeia o instante em que nascemos e o momento em que nos entregamos ao nosso próprio mar, aquele que se sabe e sente existir mais à frente.

E é de facto isso o que encontramos a contaminar a Poesia de Luís Ferreira neste seu volume. Deparamo-nos com um mapa hidrográfico composto por poemas que são afluentes de um poema maior, que é a própria caminhada do poeta na incessante busca das palavras com que revestirá cada instante.

O leitor reparará que cada poema tem vida própria, cuidando Luís Ferreira, para nos intuir essa sensação, de os cingir a uma única estrofe, sem barragens, conferindo-lhes capacidade de legar, no tegumento da terra, a sua necessária via, entre margens, consoante a respiração do momento, através de versos desprovidos de métrica, entregues ao simples fascínio da descoberta.

Um registro poético impetuoso, porque mesurado por um olhar grávido de espanto, tocado pelas mãos onde brota o poder de criar, erguido por palavras essenciais.

Rio de Sal é um livro, uma teia poética, que, mais do que para ser lido e meditado, é para ser lido e sentido.

Xavier Zarco
Coimbra, 8 de Março de 2008

2008.04.26 - Dramático de Vilar do Paraíso - Vila Nova de Gaia - Apr. "Ascensão do fogo", Jorge Vicente e "Fractura possível", José Gil

A Poesia está em festa, melhor, duplamente em festa. Digo-o pela raridade em podermos assistir, não a um novo autor a apresentar a sua primeira obra a solo, mas a dois autores apresentarem as suas primeiras obras a solo.

É um dia raro. Mais raro porque é mais um risco, um duplo risco, assumido pela Edium Editores, cujo catálogo de Poesia bem merece um olhar mais atento.

Também é verdade que a Poesia não necessita de muito para estar em festa. Basta que haja quem a diga e, sobretudo, quem a escute. Por isso, hoje há celebração da Poesia.

Bem hajam, por isso. Autores, editores, mas sobretudo todos vós, pelo privilégio que nos concedem com a vossa presença.

Muito obrigado por isso.

Conheço ambos os autores presentes: Jorge Vicente e José Gil, não só pelo que escrevem, mas pelo que são, como pessoas, como todos nós, com defeitos e virtudes.

São dois poetas, porque é por estas suas facetas que aqui estou, que se cruzam comigo há já um bom par de anos através desse magnífico, mas também terrível mundo novo que é a Internet.

Jorge Vicente e José Gil têm uma história em comum: espaços e projectos confluentes. Talvez por esse motivo considere um equívoco a designação deste evento. Chamaram-lhe dois poetas quando de facto estamos perante um único rio.

Este rio tem a ver com o facto de Jorge Vicente e José Gil marcarem a sua presença em listas comuns ou em livros. Saliento os projectos antológicos do Grupo Escritas, que já vão no seu número cinco. Os livros “www.3poetasemleiria.pt”, de 2002 ou “A Bic(a)”, de 2005.

Este rio também está ligado ao que está no cerne da acção poética destes dois escritores: a cultura, a vontade que ambos sentem na demanda do conhecimento, a paixão que ambos demonstram na leitura. São por isso um rio de preservação da memória.

E é neste último tópico que as coisas se complicam. Este rio, como todos os rios, tem duas margens, margens que são elaboradas de forma diversa. Aliás, entre Jorge Vicente e José Gil, nada mais há de comum. Se José Gil nos oferece a visão de um cinzel, pela forma como processa o seu labor de esculpir a Poesia, Jorge Vicente traz-nos a delicadeza de um gradim, um utensílio que aprimora o detalhe.

Se ambos trabalham a mesma matéria, a palavra, nesta buscam a sua essência de forma totalmente distinta. São as margens opostas deste rio. Opostas, mas não de costas voltadas. Ambos sabem do quão essencial é a comunicabilidade.

Posto isto, vamos então às minhas leituras, também elas possíveis, destas duas obras: “Ascensão do fogo”, de Jorge Vicente e “Fractura possível”, de José Gil.

E é aqui, tal como se diz na minha terra, quando as coisas se complicam, que a porca torce o rabo. E o motivo de tal complicação advém dos excelentes textos de apoio que ambos estes livros possuem: “Ascensão do fogo”, de Jorge Vicente, com um posfácio de Rui Sousa; e “Fractura possível”, de José Gil, com um prefácio de Jorge Vicente.

Se no caso do livro do José Gil tenho desculpa, no outro não há desculpa possível. E explico: um prefácio deve convidar o leitor para a leitura, um posfácio deve dar uma leitura possível ao leitor. Logo, quem tem de apresentar um livro, deve imitar o Diabo e fugir a sete pés de qualquer posfácio.

O pior é que ambos possuem, o primeiro necessariamente, porque de um prefácio se trata, de uma forma mais ligeira, tópicos essenciais para a compreensão da poética apresentada.

Mas há que apresentar, como tal, sobre “Ascensão do fogo”, cumpre-me dizer que, se tivesse de definir este livro de Jorge Vicente, talvez afirmasse o seguinte: é um volume sobre a observação e posterior depuração sensível do mundo.

Anexaria aqui a voz de um dos meus poetas de referência, o inexplicavelmente esquecido Afonso Duarte porque, a esparsos, neste “Ascensão do fogo”, a sua voz escuto.

Servirá como uma espécie de epígrafe o que Afonso Duarte escreveu no poema “Inscrição”, poema primeiro do seu livro “Cancioneiro das Pedras”. É o seguinte:

Dos vastos horizontes me invocaram,
Noutras formas artísticas imersos,
Revoltos pensamentos que formaram
Todo o amor e pureza dos meus versos.

Eis a súmula, o ponto de partida que está subjacente a este livro do jovem poeta Jorge Vicente para a sua aventura.

Ao observar o mundo, ao colocar-se numa posição, não de mero espectador, mas de alguém que realmente vê, intervém na construção e reconstrução da memória, fazendo desta a essência da sua acção poética que está presente neste excepcional ciclo de vinte e cinco poemas.

Seguindo a ideia de Afonso Duarte, há uma invocação latente no que no olhar se revela, despertando o pensamento revolto porque é daí que o poema se forma em amor e pureza, amor às palavras, pureza porque é intuito de comunicação, de partilha.

A palavra pedra assume nesta obra uma importância superior. É ela, como refere o posfaciador, embora a designe por rocha, e passo a citar: “que constantemente é nomeada nos versos como simbologia do tempo que passa mas deixa marcas”.

O poeta procura a sua linguagem na pedra, no que a pedra simboliza, embora sabendo que a pedra é o que ficou na sua memória. O estilhaço, o fragmento de um determinado lugar numa determinada circunstância temporal.

Há portanto que a trabalhar, que dela retirar o corpo do poema. Como o próprio poeta diz:

a memória verga todas as coisas,
mesmo o silencioso movimento
da não existência


ou, pouco mais à frente:

deixa que a casa se revele
como um véu inacabado


Daí, por este véu inacabado, creio que a pedra é trabalhada com um gradim, o tal utensílio que antes referi, porque há uma busca pelo detalhe, pelo pormenor.

Essa certeza de que a obra é inacabada, mas que mesmo assim se torna urgente a sua execução, deve-se ao sentir, como Jorge Vicente refere:

o caminho faz-se da observação
da memória

Um caminho que é eterno, passa de homem para homem, cada qual decifrando com outro olhar a pedra onde se regista o tempo ou, nas palavras do poeta:

a candeia vibra com o repouso
das estrelas silentes

assinalando a eternidade do caminho

A candeia leio-a como um símbolo da percepção do homem sobre a coisa antes criada e que repousa na pedra. Jorge Vicente é mais um passo, um passo intermédio que sob a luz da candeia do seu tempo desvela a sua visão do mundo, talvez por isso diga:

uma réstia de caminho,
até alcançar o passo dos homens

O certo é que é um caminho, e a transformação desse caminho, sob a luz da candeia deste poeta que vale bem a pena explorar.

Para concluir, talvez a explicação do título resida exactamente nesse processo. Sob o olhar, necessariamente preso a um determinado tempo, e aos ensinamentos que se souberam colher, a pedra revela-se para deflagrar onde deve deflagrar. Isto é, no olhar alheio, no olhar do leitor.

Sobre o livro de José Gil, “Fractura possível”, o que se pode dizer? Um livro de estreia com cento e tal poemas? Um volume que nos é entranho, como se fosse gerado no caos? Uma antologia, no sentido de súmula de uma obra que se espalhou pelo tempo e que agora é ordenada? E este título?, o que significa esta fractura e este possível?

É um engano, um puro engano. O mais desprevenido leitor poderá nele ver o fim de uma etapa e o início de outra. Todos nós sabemos que o que virá, mesmo que muito distinto seja, leva sempre consigo vestígios do passado. Mas, também, não é este o caso.

Sequer é o da dificuldade de acesso à edição, em que o autor aproveita a ocasião para dispor os mais variados marcos para delimitação do seu terreno.

É, de facto, uma possível fractura. Uma solução de continuidade que se revela e oculta, consoante a perspectiva que sobre as suas palavras se detém.

É um livro de qualidade superior, uma demanda de um registo metalinguístico, onde o corpo, e o seu próprio código linguístico, assume predominância. Entre os seus versos poderá o leitor rever-se quando, através do olhar, das mãos, dos mais singelos gestos, se expressa, sem palavras, sem verbalizar quaisquer palavras, para o outro.

Como exemplo, deixem que vos leia o seguinte:

na Arcada escrevemos um café
sem memória
e
nas vielas te beijo

e por esse beijo
azul me perco


É o plano do corpo. Elemento essencial para o encontro do homem com o mundo. Centro nevrálgico para sentir e para racionalizar o mundo. No entanto, também é espaço de sensualidade. O corpo como templo do prazer. Do prazer dos sentidos e da própria escrita. Como diz o poeta:

se o mar acariciar as rosas espero-te
na vírgula mais doce
onde o lápis toca o teu rosto
e penetra os teus lábios

Ou um pouco mais à frente neste mesmo poema, pode ler-se o seguinte:

se o amor for escrito a pincel toca-me
com o teu mamilo que mói
nas ancas da letra sensível


É um livro aberto, no sentido de se propor à descoberta de quem o ousar. Traz-nos a memória do tempo, um rico registo intertextual, como possibilidade de comunicação entre as mais distintas gerações do pensamento. Como, por exemplo, sendo os dois primeiros versos, um título de Mia Couto, escutemos o seguinte:

“um rio chamado tempo
uma casa chamada terra”
uma frescura chamada alegria
e os olhos negros de uma criança
negra

Há nele, inclusive, uma possível teoria explicativa do cientista, homem nado do rigor matemático, sentir a necessidade de expressão através do mundo da filosofia, do mundo das ideias, através das palavras. Como exemplo, este fragmento onde o poeta reflecte sobre os poetas:

os escritores não conseguem já falar de torres de
marfim
desenham a IC 19 como o lugar mais poético e tercena /
barcarena
como uma tosta mística com anjinhos red bull

Este volume, este grosso volume, intitulado “Fractura possível”, é a visão do tempo através do próprio tempo. Fractura, no sentido pleno da ruptura, condição essencial para o devir, no sentido hegeliano do termo. Possível, porque nada é o homem sem passado, sem memória, sem cultura, sem referências. Ouçamos o seguinte:

vou lendo René Char na sala do aeroporto
o avião enche-se de asas, daqui a pouco Paris espera-me

Les Champs-Elisées onde como os pássaros
do Sena plantarei
por ti serapol e alecrim

viajarei em Jacques Brel e Leo Ferré
nas florestas de ébano e de sândalo


Em suma, José Gil traz-nos esse mundo da palavra e do que está para lá da palavra, oferta-nos esse mundo das ideias e essoutro das sensações.

Ao Jorge Vicente e ao José Gil, deixo aqui os votos para que estes vossos livros sejam os primeiros de muitos.

À Edium desejo, mais uma vez, que esta vossa aposta seja verdadeiramente vencedora, o que significa comercialmente válida.

A todos vós, o meu muito obrigado pela vossa presença nesta tarde de sábado.

Obrigado.

PREFÁCIO - "Da humana condição", José-Augusto de Carvalho


"Da humana condição"
José-Augusto de Carvalho
Edium Editores, 2008


Escrever sobre a Poesia de José-Augusto de Carvalho é como se me sentasse à beira de uma janela e observasse o Alentejo. Uma janela imaginária, privilegiado miradouro, que abarcasse esse pedaço, tantas vezes esquecido, do nosso país: Portugal.

Imagino que um pássaro viria e com ele outros se acercariam de uma qualquer árvore que ali surgisse. Entoariam o cante nobre, pleno de orgulho, de liberdade e resistência.

De súbito, a planície onde uma seara anunciar-se-ia grávida de pão e a ceifeira dobraria o seu corpo e repetiria o gesto, o movimento e a dor de saber que o farto pão, que ali iniciaria o seu caminho, iria para outra mesa que não a sua.

Também o sol acudiria ao chamamento deste meu mirante e experimentaria o sabor da cal. Observaria então como as suas tranças chicoteavam os corpos dos ganhões, que nada possuíam de seu, somente o corpo, a força que jorrava do corpo e os cingiu ao labor por fraca jorna.

Mas também a sombra, aquela que a si própria se inventa sob um chaparro que, como criança, brinca com o sol, a dureza do ofício e seu escasso retorno, me visitaria. Não deixaria de o fazer.

E, apesar de tudo, haverá vinho, pão, azeitona e haverá a magia de uma esperança que será mais forte do que os grilhões, o latifúndio, o dinheiro.

Uma esperança que canta nas dobras do poema e resiste, porque insiste, em ser exactamente o que é, como se dissesse, de cada vez que olho para esta minha janela, que Eufémia, como uma vez escrevi, nunca será Efémera.

É isto o que sinto quando revisito a Poesia de José-Augusto de Carvalho.

No entanto, esta é a minha imaginação a exercer a sua influência, a criar o espaço concreto onde creio que o poeta elabora o seu ofício. Mas, apesar de tudo, não deixa de ser um espaço ideal para o erigir de um discurso poético que me faz ir do particular para o todo, do todo para o particular e que me obriga a persistir a desviar o meu olhar para esta minha janela onde não é o Alentejo o que se visiona, mas o mundo, o mundo com os seus senhores e os seus servos.

É o recurso engenhoso e com arte da metonímia o que se pode descobrir a cada passo da sua obra.

José-Augusto de Carvalho apresenta-nos, em todo o seu esplendor, a humana condição, que quantas vezes fazemos de conta não ver, mas que existe e invade, enquanto jantamos e lançamos comentários que, amanhã, poucos deles restarão na nossa memória, porque a vida é feita no desespero de cumprir a hora, exagerando, ou talvez não, de cumprir o segundo.

Este tomo não deve, não pode passar indiferente. É Poesia no seu esplendor porque habita ao nosso lado e não devemos, não podemos manter o olhar cerrado. Isto, claro, se desejarmos, de facto, um mundo melhor. Se não for para nós, que seja para aqueles que nós gerámos.

Talvez este “Da humana condição” constitua uma bela oferenda para todos quantos afirmam que a Poesia é inútil. Escrevo-o porque trata-se de um volume onde, repetindo as palavras enformadoras deste título, a condição humana se desnuda perante o nosso olhar.

Xavier Zarco
Coimbra, 15 de Janeiro de 2008

2008.03.29 - Salão Nobre J.F. Ferreira do Alentejo - Apresentação "Da humana condição", de José-Augusto de Carvalho

Antes de tudo, muito obrigado pela vossa presença. Sem ela, como já por diversas vezes mencionei, nada do que se possa fazer sobre Poesia teria qualquer sentido.
Também devo agradecer à Junta de Freguesia de Viana do Alentejo pela amabilidade com que nos recebe.
Quem me conhece, ou leu os registos que vou fazendo no meu diário, sabe que a internet me possibilitou o acesso a diversos poemas dos mais díspares autores. Procuro vozes novas e novas formas de usar a Língua como material para o ofício poético.
De entre todos, também sabe, quem me conhece ou leu, do destaque que dei a dois autores em particular: José Félix e José-Augusto de Carvalho, ambos que agora se encontram editados, tal como eu, sob a chancela da Edium Editores.
Agora, imaginem como é que eu me sinto tendo, no passado sábado, apresentado um livro do primeiro e hoje uma obra do segundo.
Só posso dizer isto: ainda bem que a minha mãe guardou os meus babetes. É que este seu filho só se pode sentir extremamente babado, não há outra alternativa.
É portanto com um misto de vaidade e enorme prazer que partilho este sempre importante momento com um dos que considero dos melhores poetas portugueses da actualidade.
Digo-o sem qualquer problema, como leitor que já leu conhecidos e desconhecidos, que já leu publicados e muitos outros, que muito dificilmente o serão, e que tem plena consciência que ainda há muito para ser descoberto.
A Poesia ao longo dos séculos já desempenhou inúmeras tarefas: desde ser moeda para pagamento de portagens até ser meio para a conquista do coração do ente amado. Serviu também de jornal levando notícias sobre batalhas. Inclusive, foi utilizada para louvar deuses e heróis. Mas em todas estas e muitas outras ocasiões, foi fruição da palavra e acto de comunicação.
José-Augusto de Carvalho oferta-nos neste seu “Da humana condição” a palavra sob duas principais vertentes: por um lado é arma, por outro é música.
É arma no sentido em que se insurge contra a indiferença do Homem para com o seu semelhante. E fá-lo sem pruridos de quaisquer espécie. Sente que o verso deve estar ao lado, na frente de batalha, nas trincheiras, junto dos que sofrem, dos que lutam em prol da dignidade humana.
É música porque sabe que, dessa forma, mais facilmente a sua mensagem pode ficar gravada na alma do outro. Ou seja: sabe que mesclando o aspecto reflexivo à componente sensível pode alcançar esse objectivo, o despertar das consciências.
A forma como conjuga estas duas abordagens confere a este seu livro uma beleza extrema onde, mesmo narrando dramas, situações de dor, o faz com arte, como deve ser.
Há pouco, no Alvito, afirmei que sinto, nesta voz única de José-Augusto de Carvalho, características presentes em três nomes maiores da Poesia de Língua Portuguesa: Antero de Quental, Camilo Pessanha e Miguel Torga. Refiro-o de novo.
Antero de Quental, pela sua capacidade no desenvolvimento temático, mesmo quando se encontra cativo àquilo que eu chamo de verso escravo, verso contido pela tradição poética a uma determinada métrica. É através de um poder de síntese que há a realçar que elabora a sua Poesia.
Camilo Pessanha, porque confere plenitude à Língua como matéria para a feitura da obra de arte, manuseando-a por forma a provocar sensações capazes de despertar no leitor a necessária meditação sobre o conteúdo. Não resisto à tentação de repetir aqui, mas sobre a Poesia de José-Augusto de Carvalho, o que sobre Camilo Pessanha escreveu António Ferro: “Na sua arte não há palavras, há sinais”.
Por fim, Miguel Torga, não por uma questão de ordem alfabética, mas porque por mais vistosa que seja uma laranja, sem sumo de pouco vale. Miguel Torga é um poeta que deu ênfase às temáticas humanistas, não descurando o amor à terra, às origens. No seus versos brota o Homem e as suas acções, a sua vida. O poeta como que ergue a sua voz para erguer os outros. É, na minha visão, uma das marcas essenciais na Poesia de José-Augusto de Carvalho.
Devo aqui também sublinhar outros três aspectos que considero fundamentais nesta sua obra “Da humana condição”: o eu, o tempo e a metonímia.
O eu, porque o poeta como que vive dentro da sua própria criação. Não é um observador que descreve, mas que vive o que escreve e, por isso, entregando ao outro o objecto a que deu corpo, entrega-se como se assim dissesse da sua efectiva presença. Desta forma, procura mostrar a possibilidade de mudança que reside nas mãos do Homem. A sua Poesia transfigura-se no olhar do outro que agora é, também, esse mesmo eu. Ou seja: pelo uso do eu o poeta pretende conferir força à sua mensagem.
O tempo, porque na sua Poesia se escutam os passos dados pela Humanidade. Talvez seja, também, por este factor que o poeta recorre maioritariamente a estrutura como o soneto ou a redondilha. E isto porque o que antes era, hoje permanece. Na essência, nada mudou. E o poeta traz-nos o retrato dessa condição que a dita evolução da Humanidade só maquilhou.
Por último, a metonímia. José-Augusto de Carvalho é um verdadeiro mestre no uso desta figura de estilo. Fala-nos do particular como se nos dissesse do todo. Escreve sobre o mundo como se nós aí lêssemos a nossa própria rua. O uso deste importante utensílio permite ao leitor ter o pleno usufruto do poema independentemente das suas próprias circunstâncias.
Quanto às temáticas que aborda, todas elas do foro humanista, como ensina o meu fiel amigo, o dicionário: o humanismo é “a atitude que consiste em pôr o centro dos seus interesses no homem”, estas não são tratados do exterior, como um mero observador. Aliás, já há pouco mencionei a importância que atribuo, na minha leitura da sua Poesia, ao eu.
Não é essa a sua missão, a de passar para o papel meras impressões das circunstâncias. Antes se envolve, participa, comunga das sensações. A sua pena está presente entre quem sofre.
Posso afirmar que é um princípio de matriz ética. É a formula encontrada por José-Augusto de Carvalho, e pela qual se rege, para o seu comportamento social, para a sua relação com os outros.
Aliás, logo na abertura deste seu livro, José-Augusto de Carvalho afirma na epígrafe:
Hirto, de pé, assumo a minha condição
até que, enfim, sucumba à última agressão.
Esta epígrafe pauta, de facto, o tom que prevalece, como marca de resistência, ao longo deste volume.
É um livro que merece o olhar atento da crítica, mas, sobretudo, o olhar de quem, de facto, faz, desfaz e refaz o poema. Esse papel só pertence ao leitor.
Para concluir, permitam-me uma palavra de apreço para a Edium Editores, não por ser a minha editora, mas pela coragem em persistir na edição de Poesia.
Meu caro José-Augusto, de novo, o meu sincero agradecimento por escreveres assim.
A todos vós o meu muito obrigado pela vossa presença e que este livro, como gosto de dizer sobre os meus, seja tudo: bom ou mau, mas que não seja indiferente.
Obrigado.

2008.03.29 - Biblioteca Municipal Luís de Camões - Alvito - Apresentação de "Da humana condição", de José-Augusto de Carvalho

Felizmente, hoje não estamos aqui para analisar o estado das coisas na cidade dos livros no que diz respeito à Poesia, mas para celebrar a Poesia. Não só pela edição deste meu livro, mas para apresentar uma das obras mais relevantes que tive o privilégio de ler nos últimos tempos: “A humana condição”, de José Augusto de Carvalho.
Desculpem a presunção, mas hoje sinto que a Língua e a Literatura portuguesas ficam mais ricas. Com estas também todos os que assim o desejarem.
Neste singelo objecto, a que denominamos por livro, conjunto de folhas encapado e cujas páginas se encontram impressas, descobrimos a rebeldia de Miguel Torga, a magia reflexiva de Antero de Quental, a beleza estética de Camilo Pessanha.
Tudo isto, e talvez mais, mas com um registro muito próprio, nado de uma voz madura, autónoma, autêntica cujo legítimo proprietário, talvez por usucapião, por efeito do tempo, é o poeta José-Augusto de Carvalho.
Depois deste preâmbulo, naturalmente que só posso sentir orgulho em estar aqui a efectuar a apresentação deste título: “Da humana condição”.
Conheci o José-Augusto de Carvalho em Coimbra. Num almoço promovido por um grupo de pessoas que tinham em comum, pelo menos assim o pensava, a paixão pela literatura.
Quis a sorte, porque de facto a sorte assim o ditou ou premeditou, que partilhássemos, em excelente companhia, uma extremidade da mesa.
Falámos de livros, de literatura, sobretudo de Poesia, e de coisas banais, embora a literatura também devesse ser uma coisa banal, mas, independentemente do tema, foi uma conversa animada, agradável, porque franca, sem rodeios. Rebateram-se pontos de vista e crescemos com a visão alheia. E é assim, a meu ver, que deve ser.
José-Augusto de Carvalho é um homem assim. Abre-se ao diálogo sem máscaras. E se assim faz o homem, assim age o poeta.
A Poesia é comunicação, é dádiva. É um espaço aberto para o mundo emotivo e reflexivo, para as coisas mais singelas e complexas.
Este “Da humana condição” é um livro escrito, sobretudo, na primeira pessoa, criando, desta forma, um ambiente de proximidade e, com este, a real possibilidade da comunicação.
A sua Poesia é, portanto, sem adiposidades, sem excessos, límpida. Com os recursos de linguagem utilizados, eleva-a a um patamar que adjectivo de universal, inteligível.
Alcança-o através de uma contextualização despojada, porque plena de saber, onde pode o leitor, independentemente da sua condição, aceder a esta sem limitações de qualquer sorte.
José-Augusto de Carvalho elabora o seu livro desta forma, dado pretender, na minha leitura, desenvolver uma espécie de luta contra o esquecimento, contra a indiferença, retratando lapidarmente o drama, a dor do Homem, não só no seu tempo e circunstância, mas através dos tempos e das circunstâncias, revelando-nos a triste constatação que, na essência, tudo permanece constante.
Mas esta visão do mundo é ofertada com arte. Entendo a verdadeira arte como um registo intemporal, algo que permanece liberto dos grilhões do tempo. E a forma como o poeta nos lega a sua visão do mundo, apesar de hoje as formas clássicas serem olhadas de soslaio, talvez mais por falta de engenho do que por outro motivo, é pela demonstração da validade dessa herança poética, o que torna este livro ainda mais rico.
Quem herda deve cuidar da herança. Em Poesia, deve moldá-la à sua própria voz. José-Augusto de Carvalho, consciente do que em mãos possui, é isso que faz.
Encontra na forma clássica o local de eleição para a possibilidade do poema, mas prescinde de alguns esquemas canónicos, por exemplo, no esquema rimático ou na própria estruturação. Fá-lo em prole do leitor, aquele que verdadeiramente possuirá o poema.
Esta preocupação do poeta nota-se, sobretudo pela musicalidade que dos seus poemas nasce, fazendo radicar nessa característica fundamental em Poesia o garante da transferência para o outro da mensagem.
E é uma mensagem forte, plena de humanismo, de valores e causas que deveriam ser um bem comum.
Há um outro aspecto que devo realçar. No seu registro poético sente-se a contaminação de um efeito que reporto de extrema importância: a metonímia. Ou seja: tomar o todo pela parte ou o contrário, a parte pelo todo.
A sua Poesia tem, na minha leitura, esse poder. Fala-nos do mundo como se nos dissesse da nossa rua. E esta é a magia da sua palavra.
Logo, só posso dizer o seguinte: obrigado, José-Augusto, por escreveres assim.
E obrigado a todos vós pela vossa presença.

2008.03.29 - Biblioteca Municipal Luís de Camões - Alvito - Apresentação de "O livro do regresso"

Em primeiro, agradeço a vossa presença porque quem faz de facto o poema não é o poeta, mas quem o lê.
Também um agradecimento especial para a Conceição Paulino pela disponibilidade e pelas suas palavras sobre este meu livro.
Um outro para a Edium Editores que, teimosamente contra ventos e marés, continua firme na sua aposta na Poesia. Merece, não só da parte de quem escreve, mas sobretudo de quem aprecia e apreciará este género, todo o nosso empenho para uma justa afirmação na conturbada cidade dos livros.
Por fim, há que agradecer às entidades que apoiam esta edição: a Junta de Freguesia de Santa Clara e a Região de Turismo da Planície Dourada. Também à Câmara Municipal do Alvito que não mediu esforços para que este evento se tornasse uma realidade.
Enriquecem-na com a sua acção, não só facilitando a publicação da obra, mas por permitirem que o nome de Raúl de Carvalho seja de novo lembrado.
Sobre “O livro do regresso”, que recebeu o Prémio de Poesia Raúl de Carvalho, em 2005, organizado pela Câmara Municipal do Alvito, nada direi, mas permitam-me que diga o seguinte:
Um dia, Raúl de Carvalho escreveu:
Preciso habituar-me ao eco dos teus passos
numa casa deserta
(...)
à canção que tu cantas e que mais ninguém ouve
a não ser eu.
Retirando estes seus versos do seu contexto original, e tomando este eu que escuta como o leitor, temos a perfeita imagem da casa da Poesia na cidade dos livros.
A casa da Poesia é uma casa modesta, situada num pequeno beco, mas com saída.
Na cidade dos livros há largas avenidas, imensas ruas todas elas bem iluminadas.
No entanto, o beco, onde a casa da Poesia se situa, aguarda serenamente que lhe mudem a lâmpada do candeeiro da iluminação pública que há muito se fundiu.
Também a placa toponímica, embora bonita e em bom estado, necessitava de um maior respeito por parte dos que retiram proveito dos encantos da cidade dos livros, pois está constantemente oculta por trás dos mais diversos cartazes.
Pessoalmente, de uma forma global, nada tenho contra a publicidade e o marketing dado ser através destes que continuo a pagar a renda da casa onde habito, mas há que ter respeito por este pequeno beco onde existe a casa da Poesia.
E digo isto porque cada vez se torna mais complicado, mesmo para quem conheça bem esta cidade, orientar-se até à casa da Poesia.
É que nem os mais antigos taxistas, os mais batidos no conhecimento de ruas, becos, vielas da cidade dos livros, conseguem intuitivamente desenhar o melhor trajecto para lá chegar.
Bem sei que os cartazes prometem sucesso até nas futuras conversas intelectualizantes à beira cafeína, mas a Poesia sempre foi, sempre é e sempre será aquela que melhores frutos produz.
Ela e a sua vizinha do lado, a Filosofia. Não só enriquecem a Língua como a necessária capacidade de abstracção.
Eu sei. Quando morre um poeta há homenagem, festa. Até os seus livros, nem que seja só por esse dia ou semana, aparecem lindos nas monstras. Até vão à televisão dizer a falta que faz. Até os jornais esticam as páginas da cultura para o devido elogio.
Mas aquilo que o poeta, tal como o leitor, realmente quer é que se saiba, sem dúvida alguma, que a casa da Poesia continua a existir, que o seu beco está bem iluminado e que a placa toponímica se encontra bem visível, tal como as outras.
Este é o seu mais íntimo desejo.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

2008.03.22 – Porto Palácio Hotel – Porto - Apresentação do livro: “Travessia” (Edium Editores, 2008) de José Félix

José Félix, autor do livro que hoje vos chega às mãos, merecia ter aqui outra pessoa, com mais experiência e conhecimento, a fazer esta apresentação. Não é uma questão de modéstia ou de humildade da minha parte. Nem uma nem outra são maleitas de que padeça em excesso. É uma simples, clara e cristalina constatação, dado estarmos perante um dos nomes mais relevantes da Poesia que se escreve em português.

Conheço o José Félix há um bom par de anos. Primeiro, através da Internet, sobretudo a Lista Escritas, que continuo a considerar a melhor das que existem em Língua Portuguesa, da qual José Félix é o moderador. Depois, em Leiria, deita feita na apresentação da Antologia Escritas, projecto de que me orgulho de participar desde o número um e que só existe e se mantém activo porque o José Félix não desarma. É um activista da Poesia puro e duro.

O José Félix representa para mim uma espécie de omnívoro da Poesia porque procura, investiga, estuda o fazer poético. Aliás, nunca se sabe sob que forma se apresenta a sua Poesia. Mas mais importante do que descortinar a vestimenta que o seu poema trará, é saber que se vai ler com gosto o que se nos apresenta após a abertura da mensagem electrónica.

Agora, uma coisa é a leitura de esparsos, outra bem diversa é a leitura de um livro. Este é um objecto, mas transcende a sua condição física. Na Poesia, naquela que de facto conta, é um objecto meditado, pensado ao pormenor. Nasce para ter vida própria, para fazer parte da vida de outro, outro que não é o poeta, o que o gerou.

Posto isto, entremos pois neste universo chamado: “Travessia”. José Félix nasceu em Angola, licenciou-se em História e reside em Portugal. Esta sinopse biográfica, concisa, talvez em demasia, mostrou-se-me deveras importante para o desbravar deste seu: “Travessia”.

Ensina o dicionário que travessia é o “acto ou efeito de atravessar”. Continua afirmando que é “passagem através de uma grande extensão de terra ou mar”. E conclui dizendo que também é: “vento contrário à navegação”.

Nada há de mais correcto. Esta obra, composta por dois ciclos, que interagem entre si, cada um com doze poemas, como doze são os meses subjacentes à epígrafe de Jorge de Sena, dá-nos, no primeiro, a planificação da passagem e, no segundo, a sua impossibilidade, através da adversidade, para simplificar, a acção do vento contrário.

Leio desta forma dado que o que se me apresenta é a condição do exílio, própria de quem sente presente a ausência concreta, porque distante das suas ou de imaginárias raízes.

A melhor imagem que encontro para exemplificar o exílio é a de uma criança no ventre materno. Ao sair, ao ser expulsa desse abrigo, desse porto de abrigo, ao sentir o corte do cordão umbilical, continua em si, radicalmente gravado o vínculo que a acompanhará para sempre. Este é, no fundo, o plano dos afectos, a consciência do exilado.

E é por esse motivo, na minha leitura, que o poeta escolhe, e bem, a epígrafe de Jorge de Sena, onde no ciclo das estações, na observação de uma espécie de eterno retorno, “só o homem morre de não ser quem era”.

Daí a necessidade da planificação cuidada que o isomorfismo dos poemas do primeiro ciclo bem evidencia. Nessa fase, o poeta recolhe as palavras essenciais para a elaboração do seu ritual, mas tendo plena consciência de que o exílio, ou a sensação deste, é permanente, o que o leva a afirmar, logo na abertura:

há uma dor peninsular
nas arestas das casas, nas fissuras
e na palavra memória (...).

E tanto assim é que recorre à ideia de península que vai sendo trabalhada ao longo deste ciclo, o primeiro, intitulado exactamente: “Travessia”. Alguns exemplos, no segundo poema: “nas margens da península deserta”, no quarto: “a península coberta”, entre outros.

Mas chamo a atenção ao oitavo poema:

(...) a dor da ilha
procura uma passagem, o tal istmo (...).

Apesar de tudo, o poeta compromete-se a prosseguir no seu intuito de regressar, porque

(...) o tal istmo
que a linguagem tem através da escrita,

onde se vê o voo das garças brancas
arquitectando as dunas da península.

Voltando ao meu fiel conselheiro, o dicionário, este recorda-me que península, palavra fundamental pela imagem que em nós desperta, como não poderia deixar de ser, se repete ao longo deste volume por doze vezes, aparece definida como “terra emersa que sobressai de um continente ou de uma ilha, a constituir uma saliência bem individualizada, ligada apenas ao conjunto de que faz parte por uma estreita faixa denominada istmo, circundada, assim, quase totalmente por mar.”

No poema a que chamei a atenção, o oitavo, eis que me surge, de novo, a imagem da criança na palavra ilha, desprovida de um vínculo real, palpável com o seu espaço inicial. Agora é homem e afirma-se como herdeiro de um passado, repleto de outras paisagens, sonoridades, aromas, palavras. Todo esse manancial, do qual não se pretende despojar, dá-lhe a argamassa essencial para a sua poética, para a elaboração do seu plano de acção, de regresso, de saída da sua condição de exilado.

um gesto no cabelo vem de longe.
traz o sabor silvestre das amoras,
os caminhos estreitos onde as mãos

entrelaçadas ficam lendo as margens
adolescentes, e na cor da língua,
os frutos rubros que a manhã aquece.

aduelas velhas prendem o jardim
nos olhos do menino que persegue
o voo da gaivota na península

e este décimo primeiro poema termina desta forma:

do vento surge a cinza do princípio

e o derradeiro poema deste primeiro ciclo começa com:

eu sei que tens a dor à tua espera.

E termina:

(...) esperas, impossível, a palavra,
a que germina no coito de um búzio,
e sopra sob a pele da noite nua.


Recordo, travessia também significa “vento contrário à navegação”.

Como escreveu Fernando Pessoa: “o homem sonha, a obra nasce”. E se o poeta elaborou o seu plano, reuniu os seus artefactos, a sua matéria plena de sons e palavras, só lhe resta o cumprimento. Eis que surge o segundo ciclo intitulado: “o país das águas”.

País, pátria, útero, ponto de partida radicalmente das águas. E o poeta vai ao encontro do seu desígnio, da sua demanda íntima através do ofício da escrita:

promontório aberto é a fuga
para o país das águas.
a península é a lembrança rasteira
duma carícia de afectos

que atravessa o corpo na idade da areia.

Anuncia neste mesmo poema, que abre o segundo ciclo, que:

há sorrisos na passagem das aves

É a utilização do instrumento da memória. Um instrumento difícil da oficina poética, que tanto nos traz a recordação do que desejamos como o seu reverso, mas cujo manuseamento se torna urgente e necessário. Como menciona o próprio poeta:

há um rio no país das águas.
nas margens, o meu pai
dá-me a explicação dos pássaros.
(...)
fico a saber que há sempre um começo e um fim
(...)
e o meu pai, a substância e o espelho.
eu tenho um deus comigo e eu não sei.


Regressando à memória, desta feita à memória cultural, completemos pois a citação de Fernando Pessoa: “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”.

Ao empreender esta jornada íntima, no cerne de si próprio, através dos escombros, vai-se encontrando cada vez mais próximo do ponto inicial do seu próprio ciclo:

a seiva da pronúncia no limbo
da semente regenerada
navegam sons, antigos,
da geografia adolescente

ou

no abraço das águas, a regeneração do corpo

no entanto, antes de prosseguir, há que regressar à palavra península, fulcral neste poemário, que surge transfigurada neste segundo ciclo, aqui, n’ “o país das águas”, é, como já referi, “lembrança rasteira” para se tornar “península perdida”, expressão inserta no quarto e no sexto poema.

O poeta sabe que o regresso não será mais do que uma quimera e que continuará cativo à sua condição de exilado, dizendo, inclusive, no sétimo poema deste segundo ciclo o seguinte:

entro na água como saí do ventre
da minha mãe, imponderável, suspenso
no líquido primordial


um pouco mais à frente, no mesmo poema, continua:

a remissão da viagem esconde
o rosto nas mãos de sangue do cordeiro degolado
persiste a culpa da promessa, e uma
casa não é uma casa
na fonte do desejo com corpos apodrecidos

dentro dela.

Agora, revendo a sua história, sabe que é este o tempo da construção. O tempo certo da sementeira. O ritmo redescoberto das estações. E o poeta observa-o, compreende-o. Reconhece os traços que se repetem ano após ano, no desvelar das estações. Mas sabe que é um mero espectador que tenta decifrar o perpétuo movimento com palavras e é pois nas palavras que radicará o seu refúgio, o seu abrigo, o seu ventre inicial:

e o meu corpo está aonde vai a água
o meu corpo está no vento
no ventre da casa conquistada à palavra
rude e simples e grávida

e é nas palavras, e por palavras, que ergue a sua nova dimensão, aquele que quis e que soube cruzar a distância demandando a raiz e desafiar a adversidade do vento, depurando e transformando em arte os escombros da memória própria ou inventada:

a água é o princípio do lábio
submerge o corpo do sangue do cordeiro
na pronúncia da primeira terra.


Mas observa e aprende, descreve e inscreve:

na gávea dos sentidos há o país das águas

Na percepção que só no íntimo encontrará o objecto da sua demanda, mesura o tempo de chegar, de construir um porto, um cais. Dar-lhe um nome que corresponda ao encontro consigo ou, mais concretamente, com as palavras, sobretudo com a palavra casa ou ventre.

Se iniciou com um isomorfismo omnipresente no primeiro ciclo, com poemas de catorze versos, se prosseguiu no segundo com um jogo polimórfico, o ancorar só se poderia dar com os mesmo catorze versos iniciais, mas recorrendo a uma estruturação diferente, aquela que a casa da Poesia lhe oferta, guardada que está através dos tempos: o soneto, mas em verso branco porque há em si vestígios da demanda empreendida. Novos caminhos que se descobrem na sua memória porque o acto poético é um acto de vida:

(...) beijo o mar
como se é o ventre de minha mãe
(...)
demoro na colecta da semente

e no apetite da voragem morro
abraçado ao tronco do esquecimento;
enfim, chegado à terra da alegria.

Obrigado.

domingo, 11 de maio de 2008

2008.03.01 - Biblioteca Municipal Florbela Espanca - Matosinhos - Apresentação do livro: “Fui... O que já não sou!...”, Paulo Themudo

Antes de mais, agradeço a vossa presença nesta tarde de sábado. A Poesia necessita de público. Sem este, nada do que se possa dizer, ou fazer, nesta área tão mal tratada da literatura, tem sentido.

Por isso, o meu obrigado.

A vida tem destas coisas, é plena de surpresas. Como em tudo, existem as boas e as más. Ora bem, este livro que hoje vos é aqui apresentado: “Fui... O que já não sou!...”, de Paulo Themudo, em mais uma aventura da Edium Editores no mundo da Poesia, da Poesia em Língua Portuguesa e de novos autores, mas com qualidade, de excelente nível, devo acrescentar, trouxe-me não uma, mas duas boas surpresas:

Em primeiro, o convite do autor para escrever uma nota introdutória à obra.

Depois, o desafio por parte do editor para efectuar a respectiva sessão de apresentação.

A ambos, devo agradecer a confiança ou, num registo mais íntimo, daqueles que só aos espelhos se revelam, a forma como quiseram cuidar da boa cotação do meu ego.

Sobre Paulo Themudo, como homem, pouco ou nada sei. Mas soube um pormenor curioso e importante. Desde já as minhas desculpas para quem, entre os presentes, não se enquadrar naquilo que na minha terra se pode definir como, desculpem a linguagem, um tipo porreiro.

E o Paulo Themudo só o pode ser. Nasceu no mês de outubro do ano de mil novecentos e sessenta e oito. Quem nasceu nesse mês e nesse ano só pode ser boa pessoa. E isto, confesso, nada tem a ver com o facto do apresentador desta obra ter nascido exactamente também nesse mês e ano.

Acreditem que esta apreciação, embora também eu saiba mentir, e há quem diga que muito bem, é mera coincidência.

Posto isto, sei que editou dois livros, sendo pois este o seu terceiro volume. Não conhecendo o autor, como se costuma dizer, olhos nos olhos, resta-me o que sei através da internet, ou seja: a sua Poesia.

Sobre este autor, escrevi o seguinte no meu diário na internet, a trinta e um de outubro de dois mil e sete:

Conheço a Poesia do Paulo Themudo há escasso tempo, o suficiente, ou talvez não, para poder afirmar que estamos perante um caso raro de sensibilidade, de capacidade de nos pintar, talvez contaminado por esta outra sua vertente artística, os sentimentos, as sensações, mas num espaço, num cenário.

As suas palavras desfilam perante nós como se fossem traços, delineando primeiramente o palco, a moldura, a tela onde as diversas sonoridades, matizes vão adquirindo forma cada mais definida.

E há a gestação de um sereno movimento, um leve abrir de asas ou o jogo de luzes que nos desvia o olhar, conduzindo-o por um rumo pré-determinado.

Agora, que o quadro, o poema cessa com a derradeira palavra, resta-nos esta estranha sensação de termos estado lá dentro, naquele espaço, com aquelas sensações que não sendo nossas, as sentimos como tal.

Esta anotação confirma-se.

Vamos pois ao que interessa, a leitura deste volume.

Um livro é como uma casa. Antes de se entrar na casa, há que a descobrir. Existem várias formas para se chegar à casa: o acaso, através de indícios ou, mais comodamente, a exacta referência.

Mas, independentemente da forma de a encontrar, a casa é, existe, assume-se como um dado físico, concreto, com as suas paredes, portas, janelas...

Sob o olhar, a casa revela-se, não só na sua condição material, mas como parte integrante de um lugar, talvez de um arruamento e com o seu próprio número de polícia.

A esta abstracção, poderemos atribuir-lhe o valor de um título. No caso em apreço: “Fui... O que já não sou!”. E este é o nome desta casa.

Utilizo a imagem da casa porque é o espaço referencial, o espaço da emoção, dos afectos, da família, dos amigos, mas, também, é o espaço da solidão e, sobretudo, é o nosso templo, espaço de reflexão, de meditação. No fundo, serve de refúgio, é o nosso canto.

Talvez por isso, diga o poeta, num poema intitulado: “Eu...”, texto com que nos abre a porta desta casa, o seguinte:

agarro o transpirar das janelas, escudos protectores das palavras

Ou seja: o espaço é habitado por palavras. Portanto, não será de estranhar que uma delas seja fulcral na leitura deste poemário. Esta é a palavra criança. Palavra que nos surge na exacta medida, ou seja: a sua repetição corresponde ao fragmento “Fui”, anunciando desta forma o fragmento “O que não sou”.

Em resumo, estando perante um livro composto por trinta e quatro poemas, essa referência deveria ocorrer dezassete vezes e, de facto, assim acontece.

Repito o que escrevi no prefácio:

feito de arte, criação humana

Criança, para além do que intuitivamente nos é apresentado, traz-nos a ideia da esperança, a capacidade do sonho, da criação. Por isso, diz o poeta:

Que eu não sei nada do que sou se não fossem os sonhos

Ou seja, a criança como o princípio, o elemento matricial do homem. No entanto, mesmo quando alude ao sonho, é necessário, urgente reforçar essa presença, e isso acontece no poema intitulado sugestivamente “Escrevo o sonho”, referindo:

Não desisto de ti
Que és nome silencioso
Que madruga e veste
As minhas mãos


E porque o sonho, a criança em acção, se pode única e somente justificar perante o outro, o leitor, pelos actos, pela liberdade, o poeta, no mesmo poema, profere:

Construí um rio de palavras
Para adormecer nas mãos de alguém

Esta é uma importante referência. Chamo pois a atenção a este poema. É, na minha leitura, de suprema relevância para o entendimento deste ciclo poético. No fundo, talvez seja o desvelar da própria essência da sua visão de arte poética: a consciência de que tudo o que se escreve só tem validade a partir do instante em que o leitor se apropria do poema. Das palavras que, numa imagem de serenidade, se recolhem nas mãos do leitor, ou, utilizando as palavras do poeta, nas mãos de alguém. Essa partilha, dá-se porque, e assim diz Paulo Themudo:

Eu fui feito de tudo
Caí, debrucei-me nas ondas do mar

E só no mar é possível exercer a navegação, partir em busca de quem se sabe ou presume existir num qualquer porto, num qualquer cais, talvez mesmo entre escombros, um náufrago que demande a palavra poética.

No entanto, o poeta sabe que o leitor necessita dos artefactos essenciais para que a sua descodificação seja possível, daí afirmar:

A luz maravilha-se com o sabor de algumas palavras
As páginas trémulas libertam-se na voz madura
Esculpo a sala onde me entrego
Pinto as paredes com um sorriso


Esta é a magia da Poesia, a sua capacidade de metamorfose para o ofício de partilha entre o poeta e o leitor. Desta forma, confessa o poeta:

Quase em silêncio entrego o nome
Nas páginas pálidas de papel
Lugar que deu lugar ao sonho

Reparem que o escritor repete a palavra lugar, reforçando desta forma a ideia da transferência quase diria metempsicótica nesse lugar, a casa, onde a criança se assume na plenitude porque, escreve Paulo Themudo,

As palavras são agora, alma, estrada

Há pois que caminhar. Como ensina Antonio Machado:

Caminante, no hay camino,
se hace camino al andar

E o poeta toma como sua essa lição, mencionando:

A estrada é a mesma
Parece que se estendeu

Mas o caminho de um poeta, como antes já insinuei, é feito de palavras, palavras que habitam no coração da casa. Elas são a sua razão de existir. É através delas que pode erguer a sua obra, ou seja: a matriz do objecto que oferece ao leitor. Por esse motivo, a dado momento, menciona:

Os meus olhos já te dizem tanto
As minhas mãos já te entregam tanto
Só preciso das palavras...


Mas não antes, como um pouco mais à frente refere, de transformá-las na sua oficina, porque o labor do poeta reside na configuração de novos sentidos para a matéria que utiliza, como o próprio refere:

Invento no sabor de uma palavra
O significado de começar

Porque é um ciclo em que se regressa sempre ao ponto inicial, à criança, à palavra criança e a toda a carga evocativa que esta palavra possui, dizendo:

Qualquer distante encanto
Faria sentido...

E esse encanto surge, mesmo quando é a ausência das coisas mais simples o quadro onde esse encanto se movimenta.

A criança corre, sorrindo,
A mesa vazia, mas vai sorrindo,
A lareira apagada, mas vai sorrindo,
A chuva molhando, mas vai, dormindo.

Mas o encanto persiste, porque a criança existe e exige, tornando este numa condição essencial, mesmo quando é nada o que se presume. Ele resiste à devastação, à erosão temporal desde que se saiba ou queira descortiná-lo. Nas palavras do poeta, esta é a sua imagem:

Da pequena janela
Surge um braço de luz
O nascer de uma estrela, era noite, aguarela

E a casa vista de fora mesura-se como refúgio

Refúgio é o corpo que dormia

Na casa, o corpo que dorme é o palco do sonho. Abre em si as portas da imaginação do homem. Aí, ele sente-se pleno, consciente do que nesse lugar mágico for capaz de descobrir, de decifrar, fá-lo-á superar-se, mesmo que, ao acordar, questione:

Que silêncio te esconde
A morada perdida

Porque só através de um incessante questionamento sobre todas as coisas, mesmo que provoque angústia a resposta sempre provisória, ele pode avançar, caminhar, embora tendo essa provisória certeza do que foi, do que já não é, mas sabendo sempre que:

Para trás o vazio
Agora, sou vida!

Direi mais: é futuro, capacidade de sonho porque desoculta a criança em si, redescoberta e reconquistada.

Parabéns, Paulo, por este teu livro. Parabéns, Jorge, pela ousadia. De novo, vos agradeço este privilégio.

A todos vós, o meu sincero obrigado e que este livro constitua instantes de uma boa leitura.

PREFÁCIO - "Fui... O que já não sou!", Paulo Themudo

"Fui... O que já não sou!"
Paulo Themudo
Edium Editores, 2008


Entrando na Poesia de Paulo Themudo é como se nos preparássemos para percorrer um mundo onde a palavra e a imagem se mesclam na perfeição. Uma existe para comprovar a existência da outra. É um jogo entre dois pólos sempre presente nos seus poemas quando os visito.

Talvez esta minha visão surja contaminada pela ideia inicial que em mim se construiu sobre este autor. Quando tive contacto com a sua Poesia, esparsos lidos através da Internet, senti curiosidade em saber mais sobre ele. Nessa minha pesquisa, encontrei uma outra sua faceta artística, a pintura. Se os poemas revelavam a construção do visual, agora o visual também desvelava a edificação do poema.

O certo é que a dúvida sobre qual das duas vertentes é pré-existente, torna a sua leitura ainda mais apelativa. Há, no fundo, um enigma a desvendar. E quem não aprecia um bom mistério, pergunto.

Agora, que surgiu esta oportunidade de escrever uma nota introdutória sobre esta sua obra: "Fui... O que já não sou!...", nada melhor do que seguir as pistas que a sua Poesia, por certo, possuirá para o revelar.

A primeira sensação é produzida pelas palavras que se abrem para um espaço cénico onde cada sílaba desenha, melhor, esboça um movimento, um gesto preciso porque depurado, feito de arte, criação humana.

Esse vislumbre inicial leva o leitor para a demanda de um enredo repleto de matizes variadas, de um universo sensorial intenso. Em síntese, do próprio espanto, o catalisador essencial de toda a Poesia.

Perpassa neste seu poemário um tom intimista com que impregna as suas palavras. Este timbre revela uma certa tristeza ou angústia, sobretudo quando mesura os passos dados para a desocultação e para o questionar do seu próprio caminho.

Apetece recordar Arthur Schopenhauer, filósofo alemão do século dezanove, porque há em Paulo Themudo, na minha óptica, a visão da arte como atenuante para o sofrimento do Homem.

E é neste último ponto, ao ler este tomo e ao regressar à sua obra plástica, que descubro o reverso do que antes pensava. Ou seja, buscando o mais ínfimo detalhe comum às suas formas de intervenção artística, encontro a musicalidade, quer pelo jogo fonético presente nos seus poemas, quer pelas sensações que a abstracção dos seus quadros desperta.

E é efectivamente a música que Arthur Schopenhauer considera como a melhor via em arte para o apaziguamento do padecimento humano porque esta se apresenta desprovida de qualquer imagem externa.

A leitura deste “Fui... O que já não sou!..." é uma autêntica viagem por um mundo de sensações que, embora sejam do poeta ou pelo poeta apropriadas, em nós desperta múltiplas questões sobre a nossa própria existência.

Agora, como uma espécie de advertência, é preciso não esquecer que estamos perante uma obra de arte, ou seja, erigida com o pressuposto de gerar fruição a outro, alheio ao criador, mas sendo a face ou a máscara do poeta o que perante nós se apresenta, esse acordar de interrogações é incontornável.

Quanto ao enigma inicialmente proposto, não sei qual a resposta, nem ao autor formularei tal questão. Imagino Poesia e pintura num processo dialéctico cuja síntese é a música. Talvez o leitor ao tomar como sua esta obra poética, transformando-a sob a sua própria forma de olhar o mundo, o decifre. Talvez.

Xavier Zarco
Coimbra, 31 de Dezembro de 2007

PREFÁCIO - "Algo indecifravelmente veloz", Andityas Soares de Moura

"Algo indecifravelmente veloz"
Andityas Soares de Moura
Edium Editores, 2007


Efectuar uma antologia poética é, como a própria expressão dá a entender, proceder à escolha de poemas em detrimento de outros. Na minha visão como poeta, este procedimento deverá ser um processo doloroso. Menciono deverá, porque nunca o fiz. Aliás, para corroborar essa ideia, há quem considere, e sinto um pouco isso, o poema como uma espécie de filho. E entre um progenitor e um filho, há um vínculo que não se quebra, ou não se deveria quebrar.

No entanto, esta colectânea, elaborada pelo próprio Autor, aparece-me como um livro novo, embora contenha, de facto, poemas anteriormente publicados. É um novo passo dado na incessante busca da palavra poética. Não é, na minha óptica, apesar das divisórias com indicação de edição, a simples, embora ampla, como refere o próprio Andityas Soares de Moura na “Notícia do autor”, selecção de poemas dos seus três livros, aos quais adicionou alguns inéditos.

Apresenta-se-me esta palavra, que surge sob o título: antologia, com um outro seu significado. Observo-a como sendo uma selecta de flores. É, por isso, que atribuo a este tomo o adjectivo de antino. Contém flores de variegadas proveniências, mas que interagem e se complementam, tais são os múltiplos focos para a deflagração dos sentidos que emanam dos seus poemas

Estamos, pois, a meu ver, perante um novo título na obra poética de Andityas Soares de Moura. O primeiro que chega até nós, finalmente, devo acrescentar, para deleite do público português.

Enveredar pela leitura deste volume é, de facto, como entrar num jardim. Há que parar, indagar pela serenidade necessária para a contemplação, o usufruto de cada traço, de cada esboço para, adindo cada instante, nos deixarmos surpreender pela virtuosidade do todo arquitectónico.

Há, no fundo, que investir na busca de cada matiz, de cada murmúrio, de cada aroma e abrirmo-nos para a desocultação dos vestígios de uma caminhada: aquela magistral viagem por entre o tempo e as suas constantes transformações para aqui chegar, a este instante em que vivemos e temos o privilégio de a todo este manancial de sensações poder não só assistir, mas degustar.

Para seguir os passos do poeta, não nos devemos esquecer do que afirmou Hegel: “Dizem (...) que coisa alguma se fez sem que houvesse a sustentá-la o interesse daqueles que nela colaboram. A este interesse chamamos nós paixão quando, recalcando todos os interesses ou fins, toda a individualidade se projecta num objectivo com todas as fibras interiores do seu querer, e neste fim concentra as suas forças e impulsos. Neste sentido, devemos dizer que nada no mundo se fez sem paixão.” (1)

Esta paixão, este empenho, com que o poeta soube contaminar a sua obra, transfere-se do Autor para o Leitor, quando este verdadeiramente, como se soía dizer: de peito aberto, se entrega à demanda do poema, quando lhe descobre novos rumos, experimenta novas sensações. E tal, neste novo título de Andityas Soares de Moura, é algo com que nos deparamos a cada verso, tal é a luminosidade da sua Poesia.

Uma Poesia que dispõe da capacidade de metamorfose rente ao olhar de espanto de cada um de nós, aqueles que, simplesmente, quisemos deambular por este autêntico jardim denominado: Algo indecifravelmente veloz.

Xavier Zarco
Coimbra, 1 de Novembro de 2007

(1) d’Hondt, Jacques – Hegel, Lisboa, Edições 70, 1990, pág. 105

2007.11.22 - Casa Municipal da Cultura (Coimbra) - Apresentação de "Variações sobre tema de Vítor Matos e Sá: Invenção de Eros"

Antes de mais, agradeço a vossa presença, sem a qual nada disto teria qualquer sentido. Quando se escreve, escreve-se para alguém. Sem leitores, de nada vale um livro. São os leitores que lhe dão realmente significado.

Agradeço também ao António Vilhena pela disponibilidade para efectuar a apresentação deste título, aqui em Coimbra. A sua leitura enriqueceu, de facto, este Variações.

Este título é único na minha obra publicada. Único no sentido de não ser um ciclo transpirado. E digo-o pela sua génese e posterior desenvolvimento. Nunca acreditei nessa coisa a que chamam de inspiração dado sempre ter procurado os temas e as formas de melhor os tratar, mas este Variações é, de facto, um livro inspirado.

Surgiu da conjunção da audição de “Rapsódia sobre um tema de Paganini” de Rachmaninov e da leitura do soneto “Invenção de Eros” de Vítor Matos e Sá, que está sequencialmente e na íntegra no corpo deste ciclo poético.

Quando dois valores, que reporto como maiores na música e na Poesia, se juntam, só há que aproveitar a circunstância. E foi o que fiz. Aproveitei o tema e a forma, que esse instante me entregou, como se costuma dizer, de mão beijada. A 6 e 7 de Maio de 2006, ele foi escrito, melhor: passado para o papel.

Com o seu surgimento, também a decisão de participar, caso o regulamento o permitisse, no Prémio de Poesia Vítor Matos e Sá, mesmo tendo vencido o anterior certame com o título “O guardador das águas”. Há quem diga que não há duas sem três, mas só o farei em 2010 se algo de excepcional ocorrer.

Para concluir, creio que deveria ser criado um regime obrigatório, melhor, um regime de voluntariado compulsivo para que todas as histórias possuíssem um final feliz. Não quero dizer com isto casamentos com prole extensa.

No caso dos livros, o final feliz corresponde a duas opções maiores. Por um lado, em sentido figurado ou talvez não, rasgados por serem maus ou, caso contrário, gastos pelo uso.

Ou seja: como gosto de dizer, que não passem indiferentes.

Muito obrigado.

2007.10.06 - Centro Cultural Municipal de Bragança - Prémio Literário da Lusofonia da Câmara Municipal de Bragança

É, para mim, uma grande honra estar aqui, nesta bela cidade de Bragança, para receber de V. Ex.as, pelo meu livro original de Poesia: “Nove ciclos para um poema”, o 1.º Prémio Literário da Lusofonia da Câmara Municipal de Bragança.

De facto, não é todos os dias que um Poeta pode adir ao seu curriculum uma distinção que advém de um certame que estava aberto à participação de todo o mundo lusófono.

Mas mais me satisfaz quanto ao género literário que surgiu como vencedor deste evento: a Poesia, essa arte tantas vezes mal amada pelo circuito comercial, aliás tal como afirmei no Porto, no passado dia vinte e nove, aquando da apresentação do meu último livro: “Variações sobre tema de Vítor Matos e Sá: Invenção de Eros”, e aqui, perante V. Exas, reforço essa mesma ideia porque dizem que a Poesia não se vende e, como tal, se recusa ou oculta, talvez para garante e confirmação da frase feita, mas que é, na minha opinião, a arte que melhor traduz a alma dos povos.

Por isso, convictamente afirmo que mesmo que não tivesse sido esta minha obra a distinguida, ficaria feliz sabendo que neste concurso multidisciplinar a Poesia se realçara.

Uma palavra, também, a esta organização, aos Colóquios Anuais da Lusofonia. Que o sétimo e o centésimo demonstrem da vitalidade da Língua Portuguesa, com ou sem acordos ortográficos. Esta língua que nos une, não nos aparta pela diversidade, antes nos enriquece.

Para finalizar, gostaria de desejar a este meu livro que seja um válido e nobre instrumento para a divulgação de Bragança e dos Colóquios Anuais da Lusofonia e que se transforme, de facto, numa mais valia para a Poesia que brota em Língua Portuguesa.

Muito obrigado

2007.09.29 - Clube Literário do Porto - Apresentação do livro "Variações sobre tema de Vítor Matos e Sá: Invenção de Eros"

Nestas ocasiões, cumpre ao autor agradecer, em primeiro, a vossa presença nesta tarde de sábado, sem a qual este evento não faria sentido. Obrigado por trocarem o vosso merecido descanso pela poesia. Bem hajam por isso.

Devo, também, manifestar a minha profunda gratidão a quem apresentou este meu livro: o poeta Luís Monteiro da Cunha e a poetisa Ana Maria Costa.

Permitam-me uma menção especial à Ana Maria Costa porque foi ela o coração de toda esta organização, tornando um mero lançamento, se calhar monótono e enfadonho, num belo momento onde a poesia ganhou outra dimensão, corpo e voz.

Naturalmente, este agradecimento é extensivo a todos quantos com ela colaboraram: Carolina Rangel, Joana Afonso, Lígia Dias, Mónica Correia, Otília Costa, Rosa Silva, Altino Costa, Henrique Gil, Manuel Soares e Ruben Correia; que, solidariamente, nos brindaram com o seu talento.

Tenho, também, de mencionar dois camaradas de letras: Del Schimmelpfeng e José Félix.

O Del, que alia ao talento literário a mestria gráfica, e que, do outro lado do Atlântico, aceitou, mais uma vez, o desafio para a feitura da ilustração para a capa de um livro meu, gesto esse que dando o rosto ao tomo, simbolicamente o anuncia.

O Félix, pelo prefácio, onde, de uma forma concisa e sugestiva, com a sua leitura pessoal, convida o leitor à descoberta deste Variações.

Por fim, mas, como se costuma dizer, não por último, o Jorge Castelo Branco.

Devo aqui, publicamente, afirmar, embora não seja algo de novo, nem de estranho para quem acompanha o universo literário em Portugal, que não deve ser de ânimo leve que uma editora, nos dias que correm, aceita e arrisca a publicação de um livro, sobretudo de poesia, independentemente da sua qualidade.

Este “Variações sobre tema de Vítor Matos e Sá: Invenção de Eros” é, verdadeiramente, um risco assumido pela Edium Editores. A este autor, desde a primeira hora, nada foi cobrado, sequer insinuado. Estamos, pois, perante uma obra com chancela editorial real, de corpo inteiro, algo cada vez mais raro.

Como poeta, mas sobretudo como leitor, é bom saber que ainda há no segmento editorial quem rume contra a maré. Falta convencer, talvez a tarefa mais ingrata, mas é para isso que cá estamos, os restantes actores do mercado do livro da relevância da poesia como factor de enriquecimento, reinvenção, engradecimento, quase diria - numa altura em que muito se fala de globalização, federalismo, iberismo - de garante de um dos pilares fundamentais de soberania de um povo: a Língua.

Esta Língua que não sendo só nossa, também nos pertence e, positivamente, nos diferencia.

Sobretudo, convencer os livreiros. Que estes não recusem títulos só por serem de poesia e, o mais importante, não os escondam num recanto perdido das suas livrarias. Como se costuma dizer: o que está longe dos olhos, está longe do coração.

Não é, de facto, obra do acaso que Portugal se está a tornar num país de poetas... esquecidos de que Vítor Matos e Sá, autor do poema de onde este livro nasceu, é, sem dúvida, caso exemplar.

Para concluir, os meus votos, que já começam a ser tradicionais. Que este livro seja tudo o que o leitor entender: bom ou mau, mas nunca indiferente.

Muito obrigado.

2007.05.27 - Palácio de São Marcos (São Silvestre - Coimbra) - Prémio de Poesia Vítor Matos e Sá - 2007

"Variações sobre tema de Vítor Matos e Sá: Invenção de Eros". Eis o título do original que, hoje, é distinguido por V. Ex.as, segunda obra de minha autoria contemplada com o Prémio de Poesia Vítor Matos e Sá, o qual agradeço.

Entendi concorrer a este certame, embora sendo esta a edição imediatamente após à que foi concedida a uma obra minha esta mesma distinção, por dois factores:

Em primeiro, a circunstância do nascimento desta obra. E devo confessar que sempre achei curiosa a forma como José Saramago justifica o surgimento de alguns dos seus livros: uma espécie de visão. Não foi, de todo, este o caso, mas esteve lá perto.

Este ciclo nasce da feliz confluência da audição de "Rapsódia sobre um tema de Paganini", de Rachmaninov e a leitura do soneto "Invenção de Eros", de Vítor Matos e Sá. Devo reconhecer: há instantes assim, momentos que definem, com precisão, não só o ponto de partida para a construção de uma obra, mas o próprio processo em que esta deve ser executada. Nada mais natural, e justo, do que o título reflectir exactamente as duas parcelas enformadoras desse instante, embora substituindo o termo rapsódia, aparentemente mais adequado por este significar recitação de poema, e é de Poesia que se trata, por variações, mais consentâneo, em minha opinião, com a estrutura deste original, ou seja: mantém-se o registro do Poema de Vítor Matos e Sá, fazendo desta matéria primordial nascer um registro diverso.

Em segundo, celebrar a descoberta de um Poeta. Porque, de Vítor Matos e Sá, era escasso o que conhecia. Receber há três anos, neste belo Palácio de São Marcos, pela minha obra: "O guardador das águas", esta distinção, fez com que sentisse a curiosidade, talvez mesmo a necessidade de demandar a sua obra. Ainda bem que assim ocorreu. Um Poeta assim merece chegar ao conhecimento, melhor ainda, ao reconhecimento público.

Há escassos dias, comentando um pequeno ciclo poético de minha autoria, um dos Poetas que mais admiro, José Félix, expressava, e passo a citar: “diz-se que há duas coisas de que vale a pena escrever: a morte e o amor. Eu confirmo e reitero.” Fim de citação.

Nem de propósito. São poucos, dos que tive o privilégio de ler, os que trataram estas duas temáticas, importantes na Poesia porque relevantes para a própria existência do Homem, principalmente, o amor, em que este Poema, "Invenção de Eros", é sublime exemplo, com tanta mestria como o patrono deste Prémio. Mesmo que outros motivos não existissem, não pode a sua obra poética permanecer hibernada num qualquer armazém ou recanto de livraria. Há que persistir na sua divulgação. Trazê-la para a rua, o verdadeiro lugar da Poesia.

Por isso, felicito o Conselho Científico da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra por este evento. Não só por relembrar o seu nome, mas, no fundo, por desta forma sugestionar a descoberta do seu legado poético.

No entanto, realizar esta iniciativa é, também, prestar um outro género de homenagem maior a um poeta, talvez a maior homenagem possível: permitir que sob o seu nome se semeie outras árvores, de onde nascerão outros frutos, outras fragrâncias para o enriquecimento da Língua Portuguesa.

Bem hajam por isso.

Obrigado.